BLOG QUE TRATA DE PSICANÁLISE

Um blog que diz de Freud, Lacan, Psicanálise, subjetividade, condição humana e outros assuntos afins, quase sempre muito interessantes...

quinta-feira, 30 de maio de 2013

FREUD E A CIÊNCIA... INUTILIDADE DAS ESTATÍSTICAS

"Amigos da análise têm-nos aconselhado a arrostar a ameaça de publicação de nossos insucessos com estatísticas de nossos êxitos, alinhados por nós próprios. Não concordo com isto. Assinalei que as estatísticas são carentes de valor se os itens nela agrupados são por demais heterogêneos; e os casos de doença neurótica que tomamos em tratamento eram, de fato, impossíveis de comparar, em uma grande variedade de aspectos."

In:   CONF. INTR. SOBRE PSICANÁLISE (1916-1917)[1915-1917]

DITO SOBRE LACAN... RITMO DE TRABALHO E HORÁRIO DO CONSULTÓRIO


"Quando pela primeira vez me dirigi ao n. 5 da Rua de Lille, no outono de 1969, Lacan, com quase setenta anos, apesar dos cabelos já inteiramente embranquecidos, nada tinha de um ancião. Eu ficava impressionado com sua energia, a voz segura, o andar. Ele atendia os primeiros pacientes a uma hora bem matinal – tive consultas por volta das oito horas da manhã e não era o primeiro a esperar – e fechava o consultório após as vinte horas. O momento do almoço era antes breve, já que a partir das treze horas e trinta costumávamos ser muitos a nos amontoar em sua sala de espera. Quanto às férias, à exceção do mês de agosto, de uma semana no Natal e na Páscoa, de alguns dias em fevereiro, ele sempre estava ali, no posto, em seu querido n.5 da Rua de Lille. Ao contrário de muitos analistas, o ofício nunca parecia cansá-lo e com certeza o uso (e o abuso) das sessões curtas o ajudava a agüentar. Um tal modo de vida e de funcionamento atesta que, se ele gostava de dinheiro, este evidentemente não era sua motivação principal."
 
In: HADDAD, G.  O dia em que Lacan me adotou: minha análise com Lacan. Tradução de Procópio Abreu. Rio de Janeiro: Companhia de Freud, 2003. 303 p.

 



DITO SOBRE LACAN... TRAIÇÃO?


"No fim da última de todas, que marcava realmente a ruptura, eu lhe disse: 'É certo que guardarei desses dez anos juntos do senhor a impressão de que desempenhou um papel decisivo na minha existência e no meu pensamento, e na psicanálise, é claro, e isso, de qualquer modo, vou reconhecer sempre'. E ele me disse: 'Mas, se você reconhece, então por que faz isso tudo?'. Respondi-lhe: 'Acho que já nos explicamos o bastante sobre isso'. Essas poucas palavras se concluíram pelo fato de que, quando eu quis cumprimentá-lo antes de ir embora estendendo-lhe a mão, ele pôs os braços atrás das costas. E assim deixei a rua de Lille."
 
In: WILDLOCHER, D.  Entrevista com Daniel Wildlocher: testemunho. [2001]. Quartier Lacan. Rio de Janeiro: Companhia de Freud, 2007. Entrevista concedida a Alain Didier-Weill, Emil Weiss e Florence Gravas.

quarta-feira, 29 de maio de 2013

DITO SOBRE LACAN... DEMANDA PARA ANALISAR MANNONI


"Lacan estava muito interessado por Dolto, porque ele sempre estava à espreita de algo da ordem de uma prática que tivesse escapado à sua teorização. Foi ele quem me pediu, a partir de diferentes comunicações que eu havia feito sobre a criança retardada e sua mãe, para fazer análise com ele. O que o interessava era meu trabalho clinico. Logo, foi por desejo de Lacan que o encontro ocorreu."
 
In: MANNONI, M.  Entrevista com Maud Mannoni: testemunho. [1993-1994]. Quartier Lacan. Rio de Janeiro: Companhia de Freud, 2007. Entrevista concedida a Alain Didier-Weill, Emil Weiss e Florence Gravas.

DITO SOBRE LACAN... OS CONJUGES DO(A)S PSICANALISTAS


"Não, não penso. Um analista existe pelo menos em três níveis: primeiro, no exercício de sua função na poltrona, isto é, como praticante; em seguida, num exercício institucional, enquanto responsável pela transmissão dos trabalhos e pela formação dos analistas; enfim, numa obra pessoal, ou antes, numa elaboração, pois as verdadeiras obras de psicanálise ainda podem ser contadas nos dedos das duas mãos. O analista é reconhecido simultaneamente nestes três registros: sua produção intelectual, seu investimento institucional e sua pratica de analista. Não é muito possível isolar o primeiro registro, como se faria para um escritor, ou até para um filosofo ou um pesquisador que se ilustrou nas ciências humanas. É por essa razão que o empreendimento biográfico sobre Lacan é de fato extremamente delicado, e talvez até contestável em seu princípio. A hipótese de que a vida de uma pessoa se comunica com sua obra é certamente interessante; no entanto, no caso de um analista, é com certeza o inverso que acontece, vale dizer que é o engajamento dele numa prática, numa instituição e numa obra que determina sua vida! Perguntem aos cônjuges dos analistas, ele lhes explicarão que a vida dos analistas é uma vida totalmente determinada pelo investimento que eles fazem nessa prática, um pouco particular, é preciso bem dizer, e que não se assemelha a nenhuma outra."
In: DUMÉZIL, C.  Entrevista com Claude Dumézil: testemunho. [1993-1994]. Quartier Lacan. Rio de Janeiro: Companhia de Freud, 2007. Entrevista concedida a Alain Didier-Weill, Emil Weiss e Florence Gravas.
 

terça-feira, 28 de maio de 2013

RESENHA DE LACAN COLEÇÃO FOLHA EXPLICA

Publicada originalmente na Revista de Psicanálise Textura, numero 8.


Resenha de Lacan, SAFATLE, Vladimir.  São Paulo: Publifolha, Coleção Folha Explica, 2007, 69 p.

 

O que um filósofo poderia dizer sobre Psicanálise e, mais ainda, sobre Jacques Lacan? Afinal, trata-se de um psicanalista que, como se sabe, foi responsável por uma reviravolta no cenário psicanalítico desde a metade do século passado e, até hoje, ainda causa certa ebulição com sua releitura ousada e subversiva da invenção freudiana.

Lacan, como nos atesta sua obra, manteve profícuo diálogo com outras disciplinas, dentre elas a filosofia. Desse diálogo arquitetou conceitos, ampliou e potencializou as descobertas da clínica psicanalítica, fazendo não apenas avançar o campo, mas, sobretudo mantendo-se por toda a vida fiel à sua própria proposta de um retorno à Freud. Alertava, então, contra o risco da biologização da pulsão, como acabou por comprovar o caminho trilhado pela chamada escola inglesa e pela inserção da Psicanálise na América do Norte, que fagocitou a peste trazida por Freud, deformando-a.

Mas, para essa tarefa, justiça seja feita, a contribuição da Filosofia foi importante, pois o ajudou a sofisticar suas hipóteses sobre a falta, o ser, a alteridade, o desejo e, em última extensão, o objeto “a”, sua única contribuição original à revolução freudiana, como afirmou certa vez.

Portanto, diante disso, os filósofos poderiam se autorizar a dizer algo sobre Psicanálise, e o filósofo e também docente do Departamento de Filosofia da Universidade de São Paulo, Vladimir Safatle, banca o risco de ser tomado como mais um teórico que se imiscuiria numa área da qual supostamente nada poderia dizer; afinal, não é psicanalista e poderia se aproximar da trama conceitual da teoria psicanalítica apenas de um ponto de vista prioritariamente intelectual.

Cabe marcar que essa potencial crítica poderia ser formulada; afinal, não é incomum encontrarmos acadêmicos que lêem as obras de Freud e Lacan e as teorizam de um ângulo questionável, a partir de um discurso universitário, muitas vezes atravessado por um sistema filosófico que o próprio Freud já criticara, comparando-o à paranóia, que espera sempre tudo pronto, sem espaço para o que não se sabe, a incompletude, a incerteza ou aquilo que não se inscreve num sistema previsível e auto-referenciado.

Porém, não é bem isso que encontramos neste livro intitulado simplesmente de Lacan, da coleção Folha Explica, editado pela Publifolha, conseqüentemente bastante acessível a um grande número de pessoas, devido à distribuição quase sempre eficaz desse gigante complexo de mídia, responsável pela publicação do jornal Folha de S. Paulo, dentre outras produções jornalísticas.

Bem, e o que encontramos então na pena de Safatle? Uma lógica articulada em uma sucessão de recortes muito interessantes da obra lacaniana, até mesmo pelo fato desse livro ter apenas 96 páginas, uma característica da coleção, o que demanda do autor capacidade de síntese e o força a eleger alguns pontos de um percurso teórico derivado de décadas, como é aqui o caso de Jacques Lacan, autor de escritos mais oficiais e também de seminários estenografados e posteriormente transformados em livros, editados em nosso país pela editora carioca Zahar.

Portanto, o que mais chama atenção nesse livro e merece ser destacado, é justamente a eleição de tópicos que possibilitam uma apreensão de um aspecto crucial da obra lacaniana, que nunca subestimou a força da divisão do sujeito, alicerçando e sustentando uma clínica que diferenciava significativamente da prática psiquiátrica de então. Isso ocorreu por volta dos anos 30, época da defesa de sua tese de doutoramento, que girava em torno de outro olhar diagnóstico e, principalmente, de uma outra postura ética daquele a quem era atribuído um saber, considerando o Inconsciente como conceito central, especialmente depois das descobertas de Freud, que abalavam as hipóteses de degeneração psíquica que, na época, eram levadas em consideração.

Os quatro capítulos que abordam a trama conceitual iniciam-se pela aproximação do jovem psiquiatra Lacan em direção à importância da alteridade, do que já ia além das explicações ditas sociais sobre a importância do outro para a constituição da personalidade e, especialmente no caso da psicose, a virulência da relação imaginária com um outro que tem consistência exagerada, como no caso de Marguerite Anzieu, o verdadeiro nome de sua paciente Aimée, famoso caso clínico de Lacan, que raramente dizia algo de sua prática clínica, preservando certo sigilo.

Num segundo momento, evidencia-se a entrada de Lacan no mundo psicanalítico, quando inicia a análise com Loewenstein, filia-se à Sociedade Parisiense de Psicanálise e estuda mais sistematicamente com Kojeve abordando fundamentalmente a obra de Hegel, o que se pode tomar como um momento de influência da filosofia em seu pensamento, visto que as hipóteses acerca do Imaginário, do Simbólico e do Real começam a tomar forma, redundando em intersecções com o campo do estruturalismo, abrindo portas para noções como desejo, lugar e posição no laço social, o pai e sua positividade, além da questão da linguagem, como aponta o terceiro capítulo.

Já no quarto e derradeiro capítulo, destinado a elencar alguns tópicos essenciais, Safatle traz o momento mais visceral de Lacan, notadamente após 1960, no qual se aprofunda no Inconsciente mais freudiano. Lacan afirma ser a missão de sua vida esse retornar à Freud e revoluciona o mundo psicanalítico, inicialmente na França e depois pelo mundo, com seus conceitos, críticas e problematizações acerca do desejo e da ética do analista, da formação desse psicanalista, da institucionalização da Psicanálise, de suas impressionantes atitudes de desfiliação das instituições oficiais ligadas à IPA, bem como também de seus esforços para fundar escolas de Psicanálise que subvertessem certos dogmas e padrões que vigoravam até então, burocratizando a formação e robotizando a prática dos futuros psicanalistas.

Depois de Lacan, é muito difícil não se dar conta de que o próprio laço entre paciente e analista passou a ser pensado e concebido de outra forma, especialmente nas questões de tempo e dinheiro, do saber, do final de análise e da mudança de posição subjetiva do sujeito frente à sua própria divisão e ao gozo sobre o qual a análise lhe permitiu saber um pouco mais.

O Inconsciente, a partir de Freud e após Lacan, deve ser considerado de outra maneira, despatologizado e reconhecido como potência do ser falante frente aos discursos que o interpelam e, principalmente, como um representante radical de um aspecto da dimensão humana que não se adapta à norma social e, portanto, não pode, nem tampouco deveria ser tomado como algo anormal, que a Medicina elege como alvo e tenta eliminar, a serviço dos ideais homeostáticos da saúde, como preconizado pela Organização Mundial de Saúde.

Vladimir Safatle deixa isso bem claro nos estertores da conclusão, quando afirma que, a partir dessa posição mais crítica frente à medicalização da vida, “podemos compreender de outra forma a ânsia social em decretar a crise da Psicanálise. O que está em jogo aqui é não simplesmente um problema relativo à eficácia de uma prática clínica determinada. O que está em jogo é o sentido da noção de cura, de normalidade e o destino que queremos dar ao sofrimento psíquico”. (p. 79)

Mais ainda, em que lugar está o psicanalista nesse cenário? A leitura desse livro talvez desoriente, mas aumenta a possibilidade de repensar o lugar do psicanalista no mundo hoje, indicando a tradição que o precede, que inicia em Freud, passa por Lacan e clama por novos capítulos, episódios e marcas no mundo.

FREUD ESCRITOR... UM HOMEM DAS LETRAS


"Todo mundo acredita que eu me atenho antes de mais nada ao caráter científico de meu trabalho e que minha meta principal é o tratamento das enfermidades mentais. É um tremendo erro que tem prevalecido durante anos e que tenho sido incapaz de corrigir. Eu sou um cientista por necessidade e não por vocação. Sou, na verdade, por natureza, artista [...] e disso existe uma prova irrefutável: em todos os países onde a Psicanálise tem penetrado, tenho sido melhor compreendido e aplicado pelos escritores e artistas que pelos médicos. Meus livros, de fato, se parecem mais a obras de imaginação que a tratados de patologia. [...] Eu tenho podido cumprir meu destino por uma via indireta e realizar meu sonho: seguir sendo um homem de letras, mesmo que sob a aparência de um médico. Em todo grande homem de ciência está o gérmen da fantasia; mas nenhum propõe; como eu, traduzir a teorias científicas a inspiração que a Literatura moderna oferece. Na Psicanálise, o senhor encontrará reunidas, mesmo que transformadas em jargão científico, as três grandes escolas literárias do século XIX: Heine, Zola e Mallarmé estão reunidos em minha obra sob o patrocínio de meu velho mestre, Goethe."
Entrevista concedida por Freud ao escritor italiano Giovanni Papini, em Viena, no ano de 1934.
 
In: ANDRADE, M. C.  Para que serve a escrita? Freud escreve(-se). Disponível em <http://www.letras.ufmg.br/poslit/08_publicacoes_txt/ale_12/ale12_mca.pdf>. Acesso em 20 fev. 2011.
 

DITO SOBRE LACAN... AS FÉRIAS DO ANALISTA


"Cheguei à Rua de Lille em alguns minutos. A sala de espera estava vazia e fui imediatamente admitido em seu escritório. Estava esperando por uma entrevista particular. Não foi nada disso, e sim, como de costume, convidou-me a deitar no divã. Falei do marasmo que tomava conta de mim. A sessão se prolongou por alguns longos minutos.

“Eu imaginava”, concluiu Lacan antes de acrescentar estas estranhas palavras: “Voltei de férias especialmente por você. Estava inquieto com você... com a sua análise quero dizer”.

O que significava essa declaração? Esse convite para retomar urgentemente as sessões? Em todo caso, tal preocupação por minha pessoa não podia permanecer isolada. Era preciso equilibrar seu efeito por uma contramedida desagradável.

“Como estou aqui especialmente por você, você me pagará o dobro do preço habitual, ou seja, 400 francos. Vejo-o de novo quarta-feira que vem na mesma hora”.

Lacan parecia alegre. Ao sair, notei a presença de outro paciente na sala de espera. Se ele voltara das férias especialmente por mim, eu dividia então esse privilégio com alguns outros.

Na semana seguinte, embora admitido diretamente em seu escritório, notei que a sala de espera começava a se repovoar. Houve uma terceira sessão desse tipo, na última semana de agosto. Dessa vez o consultório reencontrara sua afluência habitual."

In: HADDAD, G.  O dia em que Lacan me adotou: minha análise com Lacan. Tradução de Procópio Abreu. Rio de Janeiro: Companhia de Freud, 2003. 303 p.

 

sábado, 25 de maio de 2013

FREUD E A CIÊNCIA... COLABORANDO COM A PSIQUIATRIA?

"A psiquiatria é na atualidade essencialmente uma ciência descritiva e classificatória cuja orientação ainda é no sentido do somático, de preferência ao psicológico, e que se acha sem possibilidades de fornecer explicações aos fenômenos que observa. A psicanálise, contudo, não se coloca em oposição a ela, como o comportamento quase unânime dos psiquiatras poderia levar-nos a acreditar. Pelo contrário, como uma psicologia profunda, uma psicologia daqueles processos da vida mental que são retirados da consciência, ela é convocada a dar à psiquiatria um fundamento indispensável e a libertá-la de suas atuais limitações. Podemos prever que o futuro dará origem a uma psiquiatria científica, à qual a psicanálise serviu de introdução."

In:   DOIS VERBETES DE ENCICLOPÉDIA (1923)

DITO SOBRE LACAN... VARIABILIDADE DO TEMPO DAS SESSÕES


"Comecemos com uma distinção: a variabilidade do tempo das sessões é uma inovação importante instituída por Lacan no manejo do tratamento. Teve o mérito de sacudir a ritualização, ou mesmo a mumificação então em curso da técnica analítica. Mas uma coisa é o emprego do fim de uma sessão para pontuar o discurso do sujeito; outra é o considerável encurtamento do tempo das sessões, a ponto de deixar o paciente apenas o tempo de pronunciar algumas palavras ou frases. Não é certo, é até pouco provável que essa técnica seja mais apta do que outra para cingir o Real em questão do tratamento. É certo que ela faz surgir, com toda a sua vivacidade, uma certa quantidade de objetos a, fulgurância do olhar, manifestação da voz do analista, até a “merda” a que o paciente pode se sentir reduzido quando a se vê expulso depois de alguns segundos. Por outro lado, tem-se uma acentuação da dimensão imaginária do significante: o paciente irá então se deter numa certa palavra proferida com a qual seu analista o deixou, ou até em alguma palavra proferida por ele, para fazer dela uma chave de sua história, a encarnação significante de sua verdade. Quantos analisandos de Lacan conheci que brandiam essa fala ou essa palavra como um troféu? Fetichização do significante, na verdade, mera resistência. Não que esse fenômeno não exista em qualquer analise; só que a técnica das sessões curtas, ao fazer “a transferência pega fogo”, a acentua."

 
In: SIMONNEY, D.  Lacan, grande homem. In: DIDIER-WEILL, A.; SAFOUAN, M. (orgs.) Trabalhando com Lacan: na análise, na supervisão, nos seminários. Rio de Janeiro, Zahar, 2009. p. 99-111.

 

quarta-feira, 22 de maio de 2013

FREUD E A CIÊNCIA... RELAÇÃO COM A PSIQUIATRIA

"Pois não consideramos absolutamente conveniente para a psicanálise ser devorada pela medicina e encontrar seu último lugar de repouso num livro de texto de psiquiatria sob a epígrafe ‘Métodos de tratamento’, juntamente com procedimentos tais como sugestão hipnótica, auto-sugestão e persuasão, que nascidas de nossa ignorância, têm de agradecer a indolência e a covardia da humanidade por seus efeitos efêmeros. "


In:      A QUESTÃO DA ANÁLISE LEIGA (1926)

EVENTO DIALOGOS DO LACANEANDO

Mais um evento realizado pela batalhadora Patrizia Corsetto...

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EVENTO INAUGURAL DE UMA SÉRIE EM BELÉM

Meus parabéns a Alan e colegas de Belém...

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terça-feira, 21 de maio de 2013

RESENHA DE O LIVRO NEGRO DA PSICANÁLISE

Publicada originalmente na Revista Stylus, n. 24, Junho de 2013.


Resenha de “O livro negro da Psicanálise

 
Organização de Catherine Meyer; com Mikkel Borch-Jacobson... [et al.]; tradução de Simone Perelson e Beatriz Medina. O livro negro da Psicanálise: viver e pensar melhor sem Freud. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2012, 638 p.

 

Criticar a Psicanálise não é tarefa fácil, especialmente quando se trata de críticas construtivas, que genuinamente visam colaborar para o aprimoramento do que está sendo objeto de um debate honesto. Porém, quando está em jogo certo tipo de crítica que se origina de outras intenções, mais questionáveis e que tem como objetivo central demolir a invenção freudiana, certamente merece um olhar menos ingênuo e mais atento. É com esse olhar que se deve ler O livro negro da Psicanálise: viver e pensar melhor sem Freud, panfleto pensado e estruturado por Catherine Meyer, com o apoio de alguns outros autores, já conhecidos na esfera do revisionismo e da crítica afetada a tudo que se refere à Psicanálise.

Sendo assim, o leitor mais desavisado não deve se surpreender com o tom que se descortina nas mais de 600 páginas da edição brasileira, ainda menos extensa que a edição francesa, de mais de 800 páginas, originalmente lançada em 2005, com grande repercussão na mídia como, aliás, é peculiar a qualquer outro tipo de ataque a Freud e sua obra. Até então, não temos nenhuma novidade, talvez apenas mais um capítulo do que nos Estados Unidos usualmente se chama de Freud Bashing, ou “bater em Freud”, termo que condensa as múltiplas formas de espancamento midiático que sempre tem como última mirada desqualificar o inventor da Psicanálise e, principalmente, cobrir de desconfiança e descrédito tudo que envolve o campo psicanalítico.

Seriam necessárias muitas páginas nesta resenha para descrever a sucessão de artigos que, com raras exceções, merecem ser acolhidos com deferência neste livro; pois o que se delineia, na maioria deles, especialmente em termos de enunciado recorrente, nada mais é do que uma intensa saraivada de investidas, ataques, desaprovações e censuras a tudo que diga respeito ao universo psicanalítico, temperadas com uma implacável dose de criticismo impiedoso e exarcebado, beirando a obscenidade.

A estrutura central desse petardo gira em torno de um claro intuito latente, que surge nas entrelinhas e que pode ser captado pela linearidade dos capítulos, títulos e seções específicas: num primeiro momento desqualificar a Psicanálise, tirando-a de seu suposto domínio hegemônico de compreensão e tratamento dos males da subjetividade humana e, posteriormente, efetuar uma troca pelas terapias comportamentais cognitivas e medicações variadas, tão típicas dessa época de certezas e respostas rápidas.

Elegendo alguns recortes específicos, podemos notar que o livro se inicia com uma notável indignação: por que a Psicanálise continua viva e forte em algumas partes do mundo e, em outras, parece quase sumir, revestindo-se de notável diminuição de importância? Alguns números são apresentados, ainda que carentes de confirmações estatísticas e de fontes confiáveis, como espera a pesquisa científica séria. Um exemplo banal: um dos autores, no afã de demonstrar que a Psicanálise e os psicanalistas estão sumindo no mundo, afirma não existir mais de três mil psicanalistas em todo o planeta. Bem, basta debruçar sobre qualquer entrevista com psicanalistas que representam instituições psicanalíticas e notar que quando as descrevem, nos fazem notar que quase sempre dizem do número de associados, e comumente estes números ultrapassam centenas em cada uma delas, contabilizando todos que nelas gravitam. Uma conta rápida de multiplicação demonstrará que esse número é nitidamente subdimensionado, pois existem incontáveis instituições psicanalíticas mundo afora. Basta apenas conversar com colegas que participam de encontros mundiais de escolas de Psicanálise, e podemos notar que, ano após ano, milhares afluem a cada um desses congressos, e caso seja necessário, é sempre possível também efetuar visitas aos sites oficiais das respectivas instituições, que trazem a lista de afiliados, que parece sempre aumentar, ano após ano. Marque-se ainda ser plausível incluir também os psicanalistas que atuam de forma mais independente e que, portanto, não se filiam às escolas de Psicanálise e associações de psicanalistas mundo afora, talvez num número inapreensível.

Os casos paradigmáticos de Freud, desde o começo, ainda nos estudos sobre a histeria, junto a Breuer, como por exemplo, Anna O. e Katharina, passando pelo Homem dos Lobos, Schereber e outros, são cuidadosamente esmiuçados, mas de uma perspectiva nitidamente viesada, que objetiva apenas colher elementos para comprovar a desonestidade científica e intelectual de Freud, suas manipulações cínicas dos resultados, a consequente a-cientificidade de seu método, a pouca eficácia terapêutica do tratamento psicanalítico, além das táticas por ele engendradas e depois aperfeiçoadas pelos seguidores com o fito de blindar a Psicanálise das críticas e da suposta fragilidade de sua organicidade conceitual e clínica, visto que é tão somente fruto do delírio de seu criador.

Esse pressuposto básico não serve apenas como pano de fundo da obra; serve também como suporte para as estratégias de confronto endereçadas à Psicanálise e a seus grandes nomes. Começando com o próprio Sigmund Freud, passando por Jacques Lacan, Bruno Bettelheim, Françoise Dolto e outros, integrantes de um grande conjunto de mistificadores e responsáveis por inúmeros erros, distorções propositadas, generalizações apressadas e, principalmente, de influências nefastas no imaginário popular, que na concepção de alguns autores do livro, seria presa fácil desses grandes comunicadores, portadores das “verdades” que adivinham do que o livro qualifica como mitos psicanalíticos. O clima bélico que atravessa cada um dos capítulos é permanente, não há boa vontade ou mesmo compreensão razoável que pudesse levar em consideração a época, o período histórico ou o momento particular de cada um desses grandes nomes, inclusive a condição de seres humanos, passíveis de enganos e equívocos como quaisquer outros, humanos, demasiadamente humanos. Não, a nítida má vontade que salta aos olhos a cada parágrafo é a tônica vigente, com condenações que se sucedem, quer seja apontando a vilania de Freud em analisar incestuosamente a própria filha ou tiranizar sexualmente a cunhada que dele dependia economicamente, a cegueira egocêntrica de Lacan em se pretender o portador exclusivista da “verdadeira” Psicanálise após Freud com sua legião de seguidores fascinados e alienados à sua palavra e imagem pirotécnica, a dissimulada falta de caráter de Bettelheim, impostor que mistificava curas e culpabilizava irresponsavelmente as mães dos autistas que atendia em sua clínica ou ainda a postura arrogante de Dolto, responsável pela “psicanalização” da França, em especial na educação e nas relações familiares, que supostamente passariam a depender de um manual de sobrevivência freudiano ou mesmo em tratamentos com psicanalistas que tomavam avidamente a rede francesa de serviços públicos, monopolizando a oferta terapêutica e criando uma rede circular de oferta e demanda, inescapável para os que lá chegavam em busca de ajuda específica.

Por mais incrível que pareça, alguns capítulos se destacam pelo despropósito, beirando o non-sense. Num deles, é tratado o que foi chamado de “desconversão” de um jovem psiquiatra, influenciado pela Psicanálise desde o começo de sua formação acadêmica, mas que, ao tomar contato com um dos autores, é convidado a passar pela tal terapia de orientação cognitiva-comportamental, que pôs em xeque suas crenças sobre o inconsciente e outras terminologias psicanalíticas que o impediam de ajudar efetivamente seus pacientes. No final desse “tratamento”, há o coroamento do processo, para satisfação do autor, com a matrícula do jovem psiquiatra em um curso breve de TCC, que servirá como referencial teórico a partir de então, salvando-o da influência nefasta da Psicanálise.

Outro capítulo traz em seu bojo algumas narrativas de pacientes que conseguiram escapar das garras dos psicanalistas, especialmente as mães de crianças autistas, ou ainda pacientes que só puderam compreender os malefícios dos quais foram vítimas após o encontro com terapeutas comportamentais e, que graças a essa técnica, alcançaram a compreensão da amplitude do perigo que corriam. Sim, essa é uma das tentativas que ultrapassam o desqualificar sistemático da Psicanálise, pois tem como intuito também apontar o perigo e os graves riscos de se entregar a uma experiência psicanalítica, empreitada que causa dependência, alienação, desfaz casamentos, envenena a vida familiar e, sobretudo, enriquece os bolsos dos analistas gananciosos, que aprenderam desde a origem, com o mestre fundador, em Viena, que adorava o dinheiro.

Após esse cenário de terra arrasada, chega então a parte que acaba revelando a verdade que subjazia a sucessão de ataques da artilharia pesada dos detratores da obra freudiana: o posicionamento de algo no lugar do que foi destruído, a saber, as descobertas da neurociência, os pretensos avanços das terapias comportamentais e cognitivo-comportamentais, além de um evidente destaque para os medicamentos que a psicofarmacologia, mancomunada com os interesses da indústria farmacêutica, oferta diuturnamente como solução mágica para a dureza da vida cotidiana, do mal-estar presente na divisão subjetiva do humano e do laço com o outro. Obviamente nada disso é levado em consideração, mas apenas e tão somente os aspectos funcionais do comportamento humano, bem como supostas desordens e transtornos de origem orgânica ou afins, numa questionável leitura empobrecida da condição humana.

Considerar meramente este livro como um absurdo pareceria ser razoável, mas com isso estaríamos incorrendo num erro, aceitar um pseudodebate que só interessa a um lado, pois o que está em questão não é a supremacia de uma abordagem terapêutica ou outra, nem mesmo uma hierarquização dos efeitos e resultados desse ou daquele tratamento psicoterapêutico, mas sim uma intenção mais ardilosa e que precisa ser explicitada em profundidade. A principal razão do lançamento deste livro no território francês foi um movimento engendrado pelos psicoterapeutas de orientação comportamental na França, pois se sentiam alijados dos serviços públicos de saúde, bem como na mídia, quando comparados aos psicanalistas, que segundo eles, detêm o controle hegemônico nesse campo da saúde pública e nos consultórios particulares. Tal movimento visou excluir o tratamento psicanalítico, inicialmente no campo do autismo, depois ampliando esse argumento para outras demandas terapêuticas, não apenas no serviço público, bem como na relação com os convênios e planos de saúde, com uma clara conexão entre essa estratégia mercadológica e o lançamento do livro. Aliás, o termo “livro negro” remete aos crimes perpetrados contra grupos, classes ou raças durante a história da Humanidade.

Coincidentemente, este livro é lançado no Brasil em 2012, e para assombro de muitos, tem início, ao menos no Estado de São Paulo, um movimento análogo ao francês, que tem como meta estipular como exclusividade a orientação comportamental-cognitiva no tratamento a autistas, em oposição ao tratamento psicanalítico, tido como pseudocientífico, considerado ineficaz terapeuticamente e pouco produtivo em termos de quantidade de atendimentos, especialmente quando comparado à díade adestramento-medicação, símbolo da avalanche adaptacionista que deu mostras de quão virulentos podem ser os ataques. Freud, na clássica entrevista que deu à BBC, pouco antes de morrer, deixou claro que a batalha ainda não havia terminado. Suas palavras mais uma vez demonstram impressionante capacidade de antevisão. Que este livro negro chacoalhe os psicanalistas e que as respostas venham vigorosamente, pois em vez de destruir a Psicanálise, como adorariam os autores, provavelmente estão tornando-a mais forte. Um efeito rebote admirável...

 

DITO SOBRE LACAN... SABER COMO DEGRADAR UMA MULHER


"Anos mais tarde, quando minha analise estava em fase final, cheguei para minha sessão diária e Gloria, inconformada, me disse que o Dr., Lacan não poderia receber-me nesse dia. Estava de cama – o que era excepcional – devido a uma forte gripe.

Volto no dia seguinte e digo a ele:

- Vim ontem, mas o senhor não pode me receber. Estava de cama (au lit).

- Como não?! É claro que naquela hora eu podia recebê-la!

Não acrescentarei nada sobre a dose de dubiedade dessa resposta e dos efeitos de vacilação que provocou em mim. Deparava-me com uma hiância (héance) igual à que se abrira no inicio de minha análise, mas com uma diferença: agora eu podia perceber que meu analista, aqui homem na cama, manifestava-se também como a-camado, o que, de fato, não o impedia de me receber.

Mas isso me mostrava ainda que, como mulher, eu podia suportar uma certa forma de degradação. Evidentemente, não vou desenvolver esse tema aqui. Digamos que aquilo me levou à revelação – revelação no sentido de uma descoberta brutal – de que a face oculta de minha demanda de neurótica era o meu fantasma. Em outros termos, o que constituíra minha demanda de analise era a própria fossa do meu fantasma. E acrescentando apenas que ter visto isso – a saber, o fato de Jacques Lacan me haver dirigido até esse ponto – foi também a alavanca, o impulso essencial que me confirmou na decisão de me tornar analista."
In: MAJOUB, L.  O encontro do Outro na série de analistas. In:  GIROUD, F. et al.  (orgs.) Lacan, você conhece? São Paulo: Cultura, 1993. p. 30-35

 

DITO SOBRE LACAN... AO FINAL DA ANÁLISE TEMOS UM ANALISTA


"Na véspera, para ajudar uma amiga a sair de uma situação de angústia traduzida num sonho, eu havia sentido uma vontade irresistível de revelar-lhe seu sentido.

-Está perfeitamente qualificado para tanto – disse-me vivamente Lacan.

Eu não sabia muito bem do que ele estava falando.

Algumas semanas depois reiterou:

-Nunca pensou em se tornar analista?

Olhei-o abismado. Eu, analista?

-Está falando sério?"
 
In: REY, P.  Uma temporada com Lacan. Tradução de Sieni Maria Campos. Rio de Janeiro: Rocco, 1990. P. 173
 

segunda-feira, 20 de maio de 2013

DITO SOBRE LACAN... PATRÃO DE GLÓRIA...


"Lacan costumava maquilar seus atos dando-lhes um ar de farsa, fingindo sobretudo interesse pelo dinheiro. Essa maquilagem não resiste à prova. Que necessidade tinha ele, na sua idade, depois de ter juntado uma bela fortuna, daqueles poucos honorários colhidos no verão de agosto. Na verdade, se Lacan gostava muito de dinheiro, não havia nele nenhuma rapinagem, e ele podia ser de uma generosidade espantosa. Sua secretária Glória me contará, depois de sua morte, a seguinte história. Um dia ela lhe pediu autorização para ausentar-se de tarde. Ele perguntou o motivo. Buscar um apartamento, disse ela, pois o proprietário do seu apartamento lhe pedira para deixá-lo. Horas mais tarde, Lacan informou-a de que Sylvia, sua esposa, havia encontrado um apartamento para ela.

'Mas eu nunca vou poder pagar o aluguel desse bairro!

- Quem está falando de aluguel? Se ele lhe convier, dou-lhe de presente'”.

 
In: HADDAD, G.  O dia em que Lacan me adotou: minha análise com Lacan. Tradução de Procópio Abreu. Rio de Janeiro: Companhia de Freud, 2003. 303 p.

 

quarta-feira, 15 de maio de 2013

ATIVIDADE OFICIAL DO FORUM DO CAMPO LACANIANO II SEMINARIO DA EPFCL-BRASIL NO ABC


Divulgo aqui uma atividade oficial do Fórum do Campo Lacaniano - SP que será realizada em Santo André, no Grande ABC. Trata-se do II Seminário da Escola de Psicanálise dos Foruns do Campo Lacaniano, dando prosseguimento ao I Seminário que aqui ocorreu no ano passado, com significativa presença dos interessados em Psicanálise que atuam na região. As informações mais detalhadas seguem abaixo, após a relação de datas e convidados.

 

II Seminário da EPFCL-Brasil / FCL-SP no ABC

Saber e interpretação na clinica psicanalítica

 

DATAS E CONVIDADOS:

24/Maio – Ana Paula Gianesi (SP)

28/Junho - Sandra Berta (SP)

09/Agosto – Helena Bicalho (SP)

13/Setembro – Silvana Pessoa (SP)

04/Outubro – Helena Ramirez (SP)

08/ Novembro – Delma Gonçalves (BH)

 

HORÁRIO: Início às 20h30 e término previsto para 22h30 (sempre às sextas feiras)

 

LOCAL: Rua Dona Elisa Flaquer, 70 – Centro, Santo André – SP (link no googlemaps: http://maps.google.com.br/maps?hl=pt-BR&tab=wl )

 

INVESTIMENTO: Uma parcela única de R$ 180,00 (podendo ser paga à vista, via depósito bancário, em nome de: Associação Foruns do Campo Lacaniano -Banco Itaú- Agência 0185 – C/C 99475-3, ou parcelada em três cheques) Após o depósito, ou ainda em caso de parcelamento, contatar por e-mail ou telefone para confirmar formalmente a inscrição:

RESENHA DE QUARTIER LACAN: TESTEMUNHOS

Publicado originalmente na revista Stylus, n. 24, de Junho de 2012

Resenha de "Quartier Lacan: testemunhos”

De: DIDIER- WEIL, Alain, GRAVAS, Florence e WEISS, Emil, Tradução de Procópio Abreu; revisão Sandra Regina Felgueiras.  Quartier Lacan: testemunhos. Rio de Janeiro, Cia de Freud, 2007, 258 p.
 
 
Quartier Lacan é muito mais do que uma compilação de entrevistas, a maioria filmada originalmente para um documentário sobre a vida e obra de Jacques Lacan. Na verdade trata-se de um documento precioso, pois revela, entre outras coisas, inúmeros aspectos do cotidiano, do estilo e da paixão de Lacan pela prática clínica.
Os treze entrevistados, cada qual em certo período, estiveram em análise com Lacan, quase todos o acompanhando pelas experiências institucionais, cisões, rupturas e atos contundentes que a história da psicanálise já demonstrou fartamente, especialmente na França. Mas, o que mais importa, é que as narrativas surgidas após as interessantes perguntas efetuadas pelos autores, desvelam um personagem bastante coerente entre o que fazia, teorizava e vivia. De acordo com o testemunho de Charles Melman, “Lacan é apresentado na literatura ou na imprensa como um individuo escandaloso, imoral: digo que é absolutamente verdadeiro. Ele é imoral porque a nossa moralidade, como todos sabem, é suja, e não só suja. Nossa moralidade nunca fez outra coisa senão cultivar a perversão. Não é a psicanálise quem diz isso, isso começa com São Paulo, é uma banalidade. Hoje, é preciso ser um pouco reservado, um pouco prudente, quando se diz de alguém: aquele ali não tem moral. Só os perversos estão ligados à moralidade, querem estabelecer ordem, em qualquer meio que seja, inclusive no meio psicanalítico. Lacan era escandaloso porque questionava, por sua conduta e por seu estilo, referências que nos são muito caras.” (p. 106)
Esse potencial subversivo presente nos questionamentos, facilmente identificável desde sua marcante proposta de um retorno à Freud, ajudou-o a balançar as estruturas de uma instituição que encerrava a virulência da descoberta freudiana em procedimentos padrões, muito próximo de uma medicina questionável e que hoje vemos avançar a passos largos. Nesse cenário Lacan, inovou, transgrediu e inventou, não apenas no manejo do tempo e do dinheiro, mas também no campo da interpretação e da transferência como, aliás, podemos notar nas palavras de outro entrevistado, Jean Clavreul, quando deixava claro que, na condição de analista, “Lacan não pensava em meu ser cheio de dificuldades ou cheio de esperança, ele só se interessava pelo que eu dizia. Logo, comecei com ele. Tive então de ser hospitalizado. E ele veio me ver no hospital, umas vinte vezes talvez, para que fizéssemos as sessões. Devo dizer que, na época, isso não me havia impressionado, porque eu não tinha modelo para me dizer como um analista devia fazer ou não. Evidentemente, não era comum, mas Lacan era assim. Há um monte de coisas dessa ordem que ele fez existir ao longo de sua vida e que são muito diferentes da imagem que em geral passam dele.” (p. 29)
Imagem que, como seria de se esperar, tem sido idealizada e distorcida, como em qualquer fenômeno de massa, transformada em parâmetro duvidoso do que seria um “analista lacaniano”, com caricatas imitações desse inventivo psicanalista, longe do estilo único que ele julgava essencial, clamando por repetidas vezes. Moustapha Safouan, em sua entrevista, deixa claro que, “quando você está num seminário de Lacan, você toma notas. Mas, depois, você volta para casa, e não vai começar a estudar essas notas, porque você é analista e tem de atender pessoas por cuja cura você assumiu a responsabilidade. É quando você vai refletir sobre o que você faz que as ideias que você ouviu no seminário poderão voltar ao seu espírito e esclarecê-lo sobre o seu próprio caminho. Se você se esforçar em escrever, produzirá um texto em que há ideias de Lacan, mas que, em seu conjunto, será da sua safra. Mediante o que, Lacan estava na posição de dizer que lhe tomavam as ideias, que as deformavam, ou então que o tinham entendido mal.” (p. 86)
Esforçar-se para aprender com Lacan, sem ser subserviente, repetidor ou mesmo imitador, não é tarefa fácil, até mesmo porque as inovações que Lacan estabeleceu surtem efeitos no tratamento psicanalítico, ainda que pontuais ou fugazes, pois depende justamente de quem os maneja. Nesse sentido, cabe perguntar: como ser lacaniano sem ser Lacan? Talvez essa seja uma pergunta chave para o desenvolvimento da teoria e práxis de orientação lacaniana.
Ainda que essa pergunta específica não tenha sido formulada, mesmo assim é possível notar o impacto do encontro com Lacan na vida e no percurso de formação dos entrevistados. Fica claro que Lacan formava psicanalistas, estruturou as noções de passe, do cartel e de alguns parâmetros do laço entre analistas dentro dos limites de uma escola de psicanálise, mas fica evidente que, para além disso, fez avançar a psicanálise, contribuindo com uma parcela significativa para a sobrevivência da invenção freudiana no mundo. Interessante notar como esse elemento também se faz presente nos testemunhos, de como a transferência de trabalho entusiasmou e solidificou gerações de novos psicanalistas.
Com isso, o leitor pode se interrogar sobre sua parcela de contribuição no cenário analítico que o rodeia, sobre o que tem feito no sentido de, como Lacan, sustentar seu desejo de analista e causar, naqueles que compreendem essa aposta, um avanço decidido rumo a um saber que não se sabe de antemão.

 

CARTAS DE FREUD... SOBRE O CARÁTER E OS LAÇOS

CARTA ENDEREÇADA A FERENCZI EM 30/05/1912


“Você conhece Biswanger, um homem extremamente honesto, sério e sincero, que é pouco talentoso, sabe disso e é muito humilde. Leu para mim um pedaço de um trabalho, no qual a Psicanálise é comparada com a psiquiatria clínica e que parte de pontos de vista corretos. Falamos também  de Jung, e ele contou que, embora  próximo a ele enquanto aluno, não espera nunca algo de sua afeição pessoal. Ele não é nenhum guia, atrai fortemente os homens e depois os rejeita com sua frieza e sua falta de consideração. Mas ele também poderia ser substituído. (...) Foi –me também solicitado que envie pacientes a Zurique. Eu realmente precisaria exercer uma influência tripla no mundo para suprir as necessidades de todos. (...) Antes de Pentecostes, houve ainda uma horrível cena entre Tausk, que é uma fera terrível, e Stekel, cena que teve toda sorte de efeitos como conseqüências. Nos últimos tempos, Stekel negligenciou suas visitas, evidentemente não está se sentindo a vontade, a mim parece que não estão excluídas surpresas, já que ele ainda está ligado a Adler. É assim que o bom e o mau se misturam.”

terça-feira, 14 de maio de 2013

DITO SOBRE LACAN... PAGAMENTO DE FALTAS NAS SESSÕES


“Começo de março de 1980.

- Quanto lhe devo? – disse-lhe eu. – Porque, afinal, o senhor me deixou na mão durante um mês.

Resposta:

- O senhor mesmo pode calcular.

Estimei que, no fundo, a ausência era responsabilidade sobretudo minha, gastava eu ter telefonado mais cedo. Calculei: um mês = tantas sessões + tantas supervisões = 5 mil francos.

- Não tenho essa quantia comigo, posso lhe deixar um cheque caução, amanhã trago o dinheiro?

- Isso mesmo.

Preenchi o cheque e lhe perguntei:

- Ponho em nome de quem?

Berros de Lacan:

- Glória, Glória! Ela irrompe imediatamente.

- Ensine Patrick a fazer um cheque.

Ele, batendo os pés sem sair do lugar, eu, voltando-me para ela:

- Em nome de quem?

Sem hesitar, ela disse:

- Em nome do Outro, com o O maiúsculo – e arrancou o cheque de mim nas barbas de Lacan.”

 

In.: VALAS, P.  Passes: o sabre e o pincel. In: DIDIER-WEILL, A.; SAFOUAN, M. (orgs.) Trabalhando com Lacan: na análise, na supervisão, nos seminários. Rio de Janeiro, Zahar, 2009. p. 122-133.

domingo, 12 de maio de 2013

DITO SOBRE LACAN... NO TELEFONE


"- Gostaria de marcar uma hora com o doutor Lacan.
- No momento não posso incomodá-lo – disse-me a mulher; era Glória. – O senhor pode telefonar às seis?
Acomodei-me diante da montanha de caixas e esperei.
Seis horas. Glória de novo.
- Aguarde um minuto.
- Escute, ele pode me receber ou não?
- Não desligue, o doutor Lacan quer falar com o senhor...
Falar comigo? Eu só queria que ele me recebesse. Será que os massagistas, dentistas ou alfaiates exigem uma entrevista prévia antes mesmo de marcar hora?
Aí, de repente, a voz monocórdica, arrastada, que desdobrava o som de cada fonema...
- Sim?
- Eu gostaria de vê-lo.
Enfrentei um longo silêncio.
- Por quê? - perguntou Lacan.
A única idéia que me ocorreu foi que eu estava com as mãos úmidas. Durante pelo menos um minuto, não me saiu som algum da garganta.
Finalmente, me ouvi dizer:
- Não ando nada bem."
In.: REY, P.  Uma temporada com Lacan. Tradução de Sieni Maria Campos. Rio de Janeiro: Rocco, 1990. 173 p.

CARTAS DE FREUD... EXPLORADO PELOS AMERICANOS

CARTA DE FREUD ENDEREÇADA A FERENCZI EM 22/10/1909

“Escrevo-lhe apressadamente, porque de outra forma não seria possível. A exploração é à americana. Quase não tenho tempo para viver, muito menos para trabalhar. Ainda por cima, Stanley Hall, em uma carta realmente amável, lembrou-me de minha promessa relativa às Cinco Lições. Por ora, terminei realmente apenas metade de uma página. Há muito menos pacientes chegando do que pacientes regulares, o que faz com que dificilmente eu possa redistribuí-los. Os pacientes são nojentos, proporcionando-me a oportunidade de realizar novos estudos técnicos(...) Uma pequena descoberta dos últimos dias alegrou-me mais do que poderiam os doze artigos do Dr. Aschaffenburg. Um filólogo, chamado Abel, publicou no ano de 1884 um escrito denominado “Os sentidos opostos das palavras primitivas”, que afirma nada mais nada menos que, em muitas línguas – no egípcio antigo, no sânscrito, no árabe, e mesmo no latim – oposições são expressas com a mesma palavra. O Sr. facilmente adivinhará que aspectos de nossas observações sobre o Ics são dessa forma confirmados. Há muito tempo não me sentia tão triunfante. Estou me ocupando também do Leonardo da Vinci.”

sexta-feira, 10 de maio de 2013

CARTAS DE FREUD... CONVERSA COM JUNG


CARTA ENDEREÇADA A FERENCZI EM 26/12/1912


“E agora, sobre Jung. Depois da reunião, às 11h, fizemos o passeio combinado, que tinha como objetivo uma conversa. Eu perguntei diretamente o que ele tinha e o que significava sua insistência no ‘gesto de Kreuzlingen’. Então, ele veio com a reclamação que eu teria me dirigido a seus inimigos, Biswanger e Häberlin, e impedido que ele me encontrasse, pelo fato de comunicar a ele minha visita somente quando ele já havia retornado. ‘O que o Sr. diria se  eu lhe escrevesse depois dizendo que havia estado na Wiene Neustadt?’. Eu reconheci que isso não seria honesto de sua parte, mas que não era meu caso, pois eu havia escrito sobre a viagem na quinta à noite, antes de Pentecostes, a ele e a Biswanger, ou seja, naquele momento, ele também já deveria saber e poderia ter vindo, se quisesse. Não, respondeu ele: ele teria recebido meu cartão somente na segunda de manhã, quando já era tarde demais (já que parti na segunda ao meio-dia). Eu permaneci firme, e então aconteceu algo totalmente inacreditável e inesperado. Subitamente, ele disse a meia-voz: ‘No sábado e no domingo estive ausente, velejando, e só voltei na segunda de manhã’. E aí, eu tinha a faca e o queijo nas mãos, sabendo aproveitar bem a situação. Perguntei-lhe se não havia tido a idéia de observar o carimbo do correio no cartão, ou então perguntar à sua mulher, antes de me acusar detê-lo informado propositalmente tarde demais. Quais repreensões faria a um paciente que não fundamentasse de outra forma a sua suspeita? Ele estava absolutamente derrotado e envergonhado, e admitiu tudo: que há muito tempo temia que a intimidade comigo ou outros prejudicasse sua independência e que por isso decidira recolher-se; que de fato, ele me construíra a partir do complexo  paterno e tinha medo do que eu poderia dizer de suas modificações, de seu particular modo de expressar-se; que ele certamente não tinha motivos para estar desconfiado, que o ofendia ser visto como um louco complexado, etc. Eu não o poupei de nada, disse-lhe calmamente que uma amizade com ele não poderia ser mantida, que ele mesmo havia evocado uma intimidade com a qual ele viria a romper tão brutalmente depois; que ele não estava bem com o Homem, com o masculino em geral, não apenas comigo, mas também com os outros; que ele repelia a todos depois de um certo tempo. Todos os que estavam comigo provieram dele, por ele tê-los expulso; que o fato de se referir à triste experiência com Honegger lembrava-me os homossexuais ou anti-semitas, cujas tendências se manifestam depois de uma experiência com uma mulher ou com um judeu. Que ele se comportava como um bêbado que grita incessantemente: não acreditem que eu esteja bêbado, apresentando inequivocamente uma reação neurótica; que eu me havia enganado sobre ele num ponto, quando o considerei um dirigente nato que, através de sua autoridade, poderia poupar aos outros muitos erros, mas ele não era assim, era imaturo e descontrolado, etc. Ele não me contradisse e admitiu tudo. Penso que isso tenha lhe feito bem. Se ele fosse alguém que conseguisse incorporar impressões vividas, eu acreditaria numa mudança duradoura. Mas há um núcleo de falsidade em sua natureza que lhe permitirá diluir as impressões. A invenção do gesto de Kreuzlingen já tem esse caráter. Uma outra prova é a seguinte: ele jurou por tudo no mundo não ser verdade que havia falado mal de mim, já no ano do Congresso de Salzburgo, num repentino capricho, que depois passou. ‘O que dizem as pessoas! Se eu quisesse acreditar no que falam sobre o Sr.!’. À noite falei então com Jones, que me assegurou ter ele mesmo ouvido o tal discurso de Jung. Jung despediu-se às 5 horas com as palavras: ‘O Sr. me encontrará sempre devotado à causa’. Ficamos juntos até o momento da despedida. Infelizmente não tive um bom dia. Cansado da semana e de uma noite em claro no trem, tive, à mesa, uma crise de angústia, semelhante àquela no Essighaus em Bremen, quis levantar-me e desmaiei por um momento. Mas eu mesmo me levantei e por algum tempo tive náuseas, que à noite se transformaram em uma dor de cabeça e bocejos, um resíduo de meus males de verão. Na noite de volta à Viena, dormi muito bem e cheguei aqui muito bem.”

 

RESENHA DE PSICANÁLISE E EDUCAÇÃO: SOBRE HEFESTO, ÉDIPO E OUTROS DESAMPARADOS DOS DIAS DE HOJE


Publicado originalmente no site do Instituto Àgora: http://www.agorainstitutolacaniano.com.br/livros_2.html

Resenha do livro "Psicanálise e educação: sobre Hefesto, Édipo e outros desamparados dos dias de hoje." De Andrea Brunetto, Campo Grande, MS: Ed. UFMS, 2008, 111 p.


O campo da intersecção entre a Psicanálise e a Educação é conhecido, especialmente no Brasil, pela intensa produção teórica, representada pelos muitos artigos, livros, dissertações e teses que são publicados regularmente, não apenas a partir dos psicanalistas interessados pelo tema, mas também por educadores afetados pelo referencial psicanalítico. Os frutos são diversos e a questão da educação em nosso país parece ser suficiente para justificar esforços ungidos pela boa intenção, ainda que seja necessária uma cuidadosa dose de bom senso na arquitetura dessa intersecção, com todos os riscos que essa empreitada possa ter, visto que os dois campos, em essência, são antagônicos e visam algo muito distinto.

Mesmo assim, esse caminho, originalmente fundado por Anna Freud; incentivada pelo pai e também por um importante interlocutor, Oskar Pfister, considerado o pioneiro das pesquisas nessa interessante e profícua extensão do saber psicanalítico, continua aberto e, ao que parece fecundo.

E podemos dizer isso, porque essa aposta permite várias possibilidades, sempre tendo um olhar endereçado à presença do inconsciente vetorizando os laços presentes no ato educativo, tanto pela via informal, como quando um pai educa um filho, bem como também na Educação mais formal, no sistema escolar oferecido pela Cultura; com suas múltiplas vicissitudes, muitas vezes transformadas em objetos de investigação pelas mãos de pesquisadores hábeis.

Devemos dizer também profícua porque permite pensar em outros ângulos de algumas questões que sempre interrogam como, por exemplo, a relação entre professor e aluno, as múltiplas dificuldades de aprendizagem e ensinagem, o fracasso escolar e outros sintomas sociais, a violência e a eclosão de certos fenômenos que supostamente deveria ser alheio ao cotidiano escolar, além de um ponto aqui que nos interessa em particular, o das crianças ditas anormais, que fogem à norma, a uma normalidade homogeneizante e tão condizente com as pré-condições necessárias – porém questionáveis, visto que se transformam em parâmetros ideais – para que a escola funcione nos moldes atuais.

Essas crianças, curiosamente, são chamadas de especiais, e não sabemos se isso deriva de uma especialidade, se deveria ser alvo da atenção apenas de especialistas ou se são, como parece, uma exceção, distorcida por um termo que num primeiro olhar parece positivo, mas quando pensado à luz da hipótese do que os psicanalistas chamam de formação reativa, acaba por desvelar a carga de preconceito que os malabarismos semânticos não conseguem ocultar eficazmente.

E é justamente dessas crianças que Andréa Brunetto trata neste livro, derivado de sua dissertação de mestrado, no Departamento de Educação da Universidade Federal de Mato Grosso do Sul; não aquelas portadoras de uma deficiência física, anatomicamente confirmada e verificada no olhar do leigo e do expert, mas as que se enquadrariam naquilo que se convencionou chamar de deficiência mental, seus efeitos e conseqüências nas vidas dessas crianças e dos adultos que a cercam. Seres que, ao que parece, não detém uma mente supostamente eficiente, que foram tão intensamente retratadas por Maud Mannonni (1985) em seu já clássico A criança retardada e a mãe, livro que, aliás, temia publicar, inibição que foi barrada por seu analista Jacques Lacan, marcando a importância de sua publicação.

O tempo demonstrou que Lacan estava correto, visto que esta obra acabou por se tornar um clássico, alicerçando o que se pensa hoje sobre a falsa debilidade mental. Andréia Brunetto também não se inibiu; como é muito comum em mestres e doutores após a defesa e traz a publico este Psicanálise e Educação: sobre Hefesto, Édipo e outros desamparados dos dias de hoje, para colaborar com a reflexão sobre este tema tão delicado e atual, a segregação do diferente, algo que a globalização não conseguiu extinguir; mas que, ao contrário, parece ter potencializado como vemos cotidianamente na mídia.

O social, até como tentativa de remediar essa situação, em contraponto a uma escola que funcionava de modo segregacionista, lança então em nível mundial a difusão da proposta de uma inclusão generalizada, inicialmente pensada como uma proposição que tem em sua essência a idéia de uma escola que possa acolher a todos sem exceções, independentemente de dificuldades prévias ou adaptativas, potenciais aquém ou além do idealmente esperado e, especialmente, que ajude por meio dessa iniciativa a favorecer o desenvolvimento das pessoas, o bem comum e a equidade nas chances em uma sociedade que funciona estruturalmente, como sabemos, de forma a manter a desigualdade.

E é nesse ponto que a autora centra seus esforços de problematização, num exemplo honesto de Psicanálise em extensão, daquilo que ultrapassa a clínica pensada em termos strictu sensu, do tratamento das neuroses. Analisar, como mostra etimologicamente a palavra, é dividir em pequenas partes e, num primeiro momento, deter-se nelas para então, num movimento subseqüente, praticar exercícios de junções, relações, aproximações e afastamentos, para então poder obter-se algo novo com relação ao ponto inicial. Esse percurso metodológico é feito com a temática do deficiente, provocando o leitor a pensar essa noção historicamente, desde os gregos, as significações dadas ao diferente em variadas épocas, tanto num sentido de discriminação bem como também de valorização, mostrando como ao longo da História este tema inquieta as sociedades, passando pelos ideais mais modernos, chegando à criação da norma, com o corpo sendo tomado de assalto pela Medicina e não mais pelas religiões e seus dogmas.

Com isso, o corpo também passa a ser mensurado, imaginarizado em torno de ideais estatísticos e controlado pela ciência, que evita a todo custo a não eficiência. Com isso, o terreno está fertilizado e pronto para fazer surgir a histeria que, como nos mostra a história da Psicanálise, ensina Freud a criar este campo que postula algo que trafega na mão contrária, visto que o corpo não é meramente anatômico, vai além e, a partir do conceito de pulsão, enigmaticamente entre o somático e o psíquico, torna-se um corpo erógeno, numa intensa relação especular com o outro, constituído justamente nessa relação com este Outro que diz da Cultura e que o introduz na linguagem, como bem atestam os casos de neurose. E no caso da deficiência?

Essa é uma boa pergunta, pois para além de algo supostamente orgânico, o que efetivamente importa é o lugar fantasmático que essa criança ocupa no desejo da mãe e, dinâmicamente, como se estruturam as coisas a partir desse aspecto tão sutil e ao mesmo tempo tão crucial. Se as hipóteses de Freud a respeito da importância de um filho para uma mulher estão corretas e, se corroboram as notas de Lacan sobre a criança, endereçadas às psicanalistas de sua época que atuavam nesse terreno, tais como Jeanne Aubry, Françoise Dolto e Maud Mannonni, podemos depreender que as vicissitudes ocorrerão entre a criança e sua mãe, um falo defeituoso que afetará diretamente o narcisismo dessa mulher. Como amar algo que não completa, mas que, ao contrário, desvela a castração? Atentemo-nos para as palavras da própria Andréa Brunetto (2008):

Vimos muitos exemplos de dedicação, sacrifício e de um amor ao filho deficiente. Ainda que ambivalente, porque este filho destoa do ideal, não podemos nos esquecer de que o amor e a carência andam de braços dados. Amor ambivalente, que tanto na superproteção como no abandono, evidenciam sua face do ódio. Mas essa outra face do amor, o ódio, não é específica dos pais com filhos deficientes. Nem mesmo é específica dos pais. É humana, demasiadamente humana. (p.60)

Portanto, num mundo que aspira ao Belo, o perfeito funcionamento das engrenagens do laço social e a satisfação permanente de seus participantes, esse ser grosseiramente diferente que causa dúvidas e intriga à Ciência, pondo em xeque conceitos tão valorizados como a inteligência e a própria noção de um devir, um vir-a-ser para o sucesso, ou até mesmo a felicidade no sentido mais prosaico da palavra, o deficiente assombra, uma encarnação do unheimlich freudiano que desnuda a dificuldade de cumprir o mandamento clássico e ingênuo de amarmos o outro como a nós mesmos. Se este outro for como nós mesmos, essa tarefa pode até ser facilitada, mas se este outro marca por meio desta diferença fundamental uma dimensão de nós mesmos que preferimos não ver, esse mandamento se esvai e surge algo complicado no lugar, que nem os mais hercúleos esforços de inclusão conseguem minimizar.

Que livros como esse ajudem a tornar a convivência com o diferente mais tolerável, menos discriminatória e mais... humana.