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quarta-feira, 15 de maio de 2013

RESENHA DE QUARTIER LACAN: TESTEMUNHOS

Publicado originalmente na revista Stylus, n. 24, de Junho de 2012

Resenha de "Quartier Lacan: testemunhos”

De: DIDIER- WEIL, Alain, GRAVAS, Florence e WEISS, Emil, Tradução de Procópio Abreu; revisão Sandra Regina Felgueiras.  Quartier Lacan: testemunhos. Rio de Janeiro, Cia de Freud, 2007, 258 p.
 
 
Quartier Lacan é muito mais do que uma compilação de entrevistas, a maioria filmada originalmente para um documentário sobre a vida e obra de Jacques Lacan. Na verdade trata-se de um documento precioso, pois revela, entre outras coisas, inúmeros aspectos do cotidiano, do estilo e da paixão de Lacan pela prática clínica.
Os treze entrevistados, cada qual em certo período, estiveram em análise com Lacan, quase todos o acompanhando pelas experiências institucionais, cisões, rupturas e atos contundentes que a história da psicanálise já demonstrou fartamente, especialmente na França. Mas, o que mais importa, é que as narrativas surgidas após as interessantes perguntas efetuadas pelos autores, desvelam um personagem bastante coerente entre o que fazia, teorizava e vivia. De acordo com o testemunho de Charles Melman, “Lacan é apresentado na literatura ou na imprensa como um individuo escandaloso, imoral: digo que é absolutamente verdadeiro. Ele é imoral porque a nossa moralidade, como todos sabem, é suja, e não só suja. Nossa moralidade nunca fez outra coisa senão cultivar a perversão. Não é a psicanálise quem diz isso, isso começa com São Paulo, é uma banalidade. Hoje, é preciso ser um pouco reservado, um pouco prudente, quando se diz de alguém: aquele ali não tem moral. Só os perversos estão ligados à moralidade, querem estabelecer ordem, em qualquer meio que seja, inclusive no meio psicanalítico. Lacan era escandaloso porque questionava, por sua conduta e por seu estilo, referências que nos são muito caras.” (p. 106)
Esse potencial subversivo presente nos questionamentos, facilmente identificável desde sua marcante proposta de um retorno à Freud, ajudou-o a balançar as estruturas de uma instituição que encerrava a virulência da descoberta freudiana em procedimentos padrões, muito próximo de uma medicina questionável e que hoje vemos avançar a passos largos. Nesse cenário Lacan, inovou, transgrediu e inventou, não apenas no manejo do tempo e do dinheiro, mas também no campo da interpretação e da transferência como, aliás, podemos notar nas palavras de outro entrevistado, Jean Clavreul, quando deixava claro que, na condição de analista, “Lacan não pensava em meu ser cheio de dificuldades ou cheio de esperança, ele só se interessava pelo que eu dizia. Logo, comecei com ele. Tive então de ser hospitalizado. E ele veio me ver no hospital, umas vinte vezes talvez, para que fizéssemos as sessões. Devo dizer que, na época, isso não me havia impressionado, porque eu não tinha modelo para me dizer como um analista devia fazer ou não. Evidentemente, não era comum, mas Lacan era assim. Há um monte de coisas dessa ordem que ele fez existir ao longo de sua vida e que são muito diferentes da imagem que em geral passam dele.” (p. 29)
Imagem que, como seria de se esperar, tem sido idealizada e distorcida, como em qualquer fenômeno de massa, transformada em parâmetro duvidoso do que seria um “analista lacaniano”, com caricatas imitações desse inventivo psicanalista, longe do estilo único que ele julgava essencial, clamando por repetidas vezes. Moustapha Safouan, em sua entrevista, deixa claro que, “quando você está num seminário de Lacan, você toma notas. Mas, depois, você volta para casa, e não vai começar a estudar essas notas, porque você é analista e tem de atender pessoas por cuja cura você assumiu a responsabilidade. É quando você vai refletir sobre o que você faz que as ideias que você ouviu no seminário poderão voltar ao seu espírito e esclarecê-lo sobre o seu próprio caminho. Se você se esforçar em escrever, produzirá um texto em que há ideias de Lacan, mas que, em seu conjunto, será da sua safra. Mediante o que, Lacan estava na posição de dizer que lhe tomavam as ideias, que as deformavam, ou então que o tinham entendido mal.” (p. 86)
Esforçar-se para aprender com Lacan, sem ser subserviente, repetidor ou mesmo imitador, não é tarefa fácil, até mesmo porque as inovações que Lacan estabeleceu surtem efeitos no tratamento psicanalítico, ainda que pontuais ou fugazes, pois depende justamente de quem os maneja. Nesse sentido, cabe perguntar: como ser lacaniano sem ser Lacan? Talvez essa seja uma pergunta chave para o desenvolvimento da teoria e práxis de orientação lacaniana.
Ainda que essa pergunta específica não tenha sido formulada, mesmo assim é possível notar o impacto do encontro com Lacan na vida e no percurso de formação dos entrevistados. Fica claro que Lacan formava psicanalistas, estruturou as noções de passe, do cartel e de alguns parâmetros do laço entre analistas dentro dos limites de uma escola de psicanálise, mas fica evidente que, para além disso, fez avançar a psicanálise, contribuindo com uma parcela significativa para a sobrevivência da invenção freudiana no mundo. Interessante notar como esse elemento também se faz presente nos testemunhos, de como a transferência de trabalho entusiasmou e solidificou gerações de novos psicanalistas.
Com isso, o leitor pode se interrogar sobre sua parcela de contribuição no cenário analítico que o rodeia, sobre o que tem feito no sentido de, como Lacan, sustentar seu desejo de analista e causar, naqueles que compreendem essa aposta, um avanço decidido rumo a um saber que não se sabe de antemão.

 

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