Resenha de Lacan, SAFATLE, Vladimir. São Paulo: Publifolha, Coleção Folha Explica, 2007, 69 p.
O que um filósofo poderia dizer sobre
Psicanálise e, mais ainda, sobre Jacques Lacan? Afinal, trata-se de um psicanalista
que, como se sabe, foi responsável por uma reviravolta no cenário psicanalítico
desde a metade do século passado e, até hoje, ainda causa certa ebulição com
sua releitura ousada e subversiva da invenção freudiana.
Lacan, como nos atesta sua obra,
manteve profícuo diálogo com outras disciplinas, dentre elas a filosofia. Desse
diálogo arquitetou conceitos, ampliou e potencializou as descobertas da clínica
psicanalítica, fazendo não apenas avançar o campo, mas, sobretudo mantendo-se por
toda a vida fiel à sua própria proposta de um
retorno à Freud. Alertava, então, contra o risco da biologização da pulsão,
como acabou por comprovar o caminho trilhado pela chamada escola inglesa e pela
inserção da Psicanálise na América do Norte, que fagocitou a peste trazida por
Freud, deformando-a.
Mas, para essa tarefa, justiça seja
feita, a contribuição da Filosofia foi importante, pois o ajudou a sofisticar
suas hipóteses sobre a falta, o ser, a alteridade, o desejo e, em última
extensão, o objeto “a”, sua única contribuição original à revolução freudiana,
como afirmou certa vez.
Portanto, diante disso, os filósofos
poderiam se autorizar a dizer algo sobre Psicanálise, e o filósofo e também docente
do Departamento de Filosofia da Universidade de São Paulo, Vladimir Safatle, banca
o risco de ser tomado como mais um teórico que se imiscuiria numa área da qual supostamente
nada poderia dizer; afinal, não é psicanalista e poderia se aproximar da trama
conceitual da teoria psicanalítica apenas de um ponto de vista prioritariamente
intelectual.
Cabe marcar que essa potencial
crítica poderia ser formulada; afinal, não é incomum encontrarmos acadêmicos
que lêem as obras de Freud e Lacan e as teorizam de um ângulo questionável, a
partir de um discurso universitário, muitas vezes atravessado por um sistema
filosófico que o próprio Freud já criticara, comparando-o à paranóia, que
espera sempre tudo pronto, sem espaço para o que não se sabe, a incompletude, a
incerteza ou aquilo que não se inscreve num sistema previsível e
auto-referenciado.
Porém, não é bem isso que encontramos
neste livro intitulado simplesmente de Lacan,
da coleção Folha Explica, editado pela Publifolha, conseqüentemente bastante acessível a um grande número de
pessoas, devido à distribuição quase sempre eficaz desse gigante complexo de
mídia, responsável pela publicação do jornal Folha de S. Paulo, dentre outras produções jornalísticas.
Bem, e o que encontramos então na
pena de Safatle? Uma lógica articulada em uma sucessão de recortes muito
interessantes da obra lacaniana, até mesmo pelo fato desse livro ter apenas 96
páginas, uma característica da coleção, o que demanda do autor capacidade de
síntese e o força a eleger alguns pontos de um percurso teórico derivado de
décadas, como é aqui o caso de Jacques Lacan, autor de escritos mais oficiais e
também de seminários estenografados e posteriormente transformados em livros,
editados em nosso país pela editora carioca Zahar.
Portanto, o que mais chama atenção
nesse livro e merece ser destacado, é justamente a eleição de tópicos que
possibilitam uma apreensão de um aspecto crucial da obra lacaniana, que nunca
subestimou a força da divisão do sujeito, alicerçando e sustentando uma clínica
que diferenciava significativamente da prática psiquiátrica de então. Isso
ocorreu por volta dos anos 30, época da defesa de sua tese de doutoramento, que
girava em torno de outro olhar diagnóstico e, principalmente, de uma outra
postura ética daquele a quem era atribuído um saber, considerando o
Inconsciente como conceito central, especialmente depois das descobertas de
Freud, que abalavam as hipóteses de degeneração psíquica que, na época, eram
levadas em consideração.
Os quatro capítulos que abordam a
trama conceitual iniciam-se pela aproximação do jovem psiquiatra Lacan em
direção à importância da alteridade, do que já ia além das explicações ditas
sociais sobre a importância do outro para a constituição da personalidade e,
especialmente no caso da psicose, a virulência da relação imaginária com um
outro que tem consistência exagerada, como no caso de Marguerite Anzieu, o
verdadeiro nome de sua paciente Aimée, famoso caso clínico de Lacan, que raramente
dizia algo de sua prática clínica, preservando certo sigilo.
Num segundo momento, evidencia-se a
entrada de Lacan no mundo psicanalítico, quando inicia a análise com
Loewenstein, filia-se à Sociedade Parisiense de Psicanálise e estuda mais
sistematicamente com Kojeve abordando fundamentalmente a obra de Hegel, o que se
pode tomar como um momento de influência da filosofia em seu pensamento, visto
que as hipóteses acerca do Imaginário, do Simbólico e do Real começam a tomar
forma, redundando em intersecções com o campo do estruturalismo, abrindo portas
para noções como desejo, lugar e posição no laço social, o pai e sua
positividade, além da questão da linguagem, como aponta o terceiro capítulo.
Já no quarto e derradeiro capítulo,
destinado a elencar alguns tópicos essenciais, Safatle traz o momento mais
visceral de Lacan, notadamente após 1960, no qual se aprofunda no Inconsciente
mais freudiano. Lacan afirma ser a missão de sua vida esse retornar à Freud e
revoluciona o mundo psicanalítico, inicialmente na França e depois pelo mundo,
com seus conceitos, críticas e problematizações acerca do desejo e da ética do
analista, da formação desse psicanalista, da institucionalização da
Psicanálise, de suas impressionantes atitudes de desfiliação das instituições
oficiais ligadas à IPA, bem como também de seus esforços para fundar escolas de
Psicanálise que subvertessem certos dogmas e padrões que vigoravam até então,
burocratizando a formação e robotizando a prática dos futuros psicanalistas.
Depois de Lacan, é muito difícil não
se dar conta de que o próprio laço entre paciente e analista passou a ser
pensado e concebido de outra forma, especialmente nas questões de tempo e
dinheiro, do saber, do final de análise e da mudança de posição subjetiva do
sujeito frente à sua própria divisão e ao gozo sobre o qual a análise lhe
permitiu saber um pouco mais.
O Inconsciente, a partir de Freud e
após Lacan, deve ser considerado de outra maneira, despatologizado e
reconhecido como potência do ser falante frente aos discursos que o interpelam
e, principalmente, como um representante radical de um aspecto da dimensão
humana que não se adapta à norma social e, portanto, não pode, nem tampouco
deveria ser tomado como algo anormal, que a Medicina elege como alvo e tenta eliminar,
a serviço dos ideais homeostáticos da saúde, como preconizado pela Organização
Mundial de Saúde.
Vladimir Safatle deixa isso bem claro
nos estertores da conclusão, quando afirma que, a partir dessa posição mais
crítica frente à medicalização da vida, “podemos compreender de outra forma a
ânsia social em decretar a crise da Psicanálise. O que está em jogo aqui é não
simplesmente um problema relativo à eficácia de uma prática clínica
determinada. O que está em jogo é o sentido da noção de cura, de normalidade e
o destino que queremos dar ao sofrimento psíquico”. (p. 79)
Mais ainda, em que lugar está o
psicanalista nesse cenário? A leitura desse livro talvez desoriente, mas
aumenta a possibilidade de repensar o lugar do psicanalista no mundo hoje,
indicando a tradição que o precede, que inicia em Freud, passa por Lacan e
clama por novos capítulos, episódios e marcas no mundo.
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