BLOG QUE TRATA DE PSICANÁLISE

Um blog que diz de Freud, Lacan, Psicanálise, subjetividade, condição humana e outros assuntos afins, quase sempre muito interessantes...

terça-feira, 28 de maio de 2013

RESENHA DE LACAN COLEÇÃO FOLHA EXPLICA

Publicada originalmente na Revista de Psicanálise Textura, numero 8.


Resenha de Lacan, SAFATLE, Vladimir.  São Paulo: Publifolha, Coleção Folha Explica, 2007, 69 p.

 

O que um filósofo poderia dizer sobre Psicanálise e, mais ainda, sobre Jacques Lacan? Afinal, trata-se de um psicanalista que, como se sabe, foi responsável por uma reviravolta no cenário psicanalítico desde a metade do século passado e, até hoje, ainda causa certa ebulição com sua releitura ousada e subversiva da invenção freudiana.

Lacan, como nos atesta sua obra, manteve profícuo diálogo com outras disciplinas, dentre elas a filosofia. Desse diálogo arquitetou conceitos, ampliou e potencializou as descobertas da clínica psicanalítica, fazendo não apenas avançar o campo, mas, sobretudo mantendo-se por toda a vida fiel à sua própria proposta de um retorno à Freud. Alertava, então, contra o risco da biologização da pulsão, como acabou por comprovar o caminho trilhado pela chamada escola inglesa e pela inserção da Psicanálise na América do Norte, que fagocitou a peste trazida por Freud, deformando-a.

Mas, para essa tarefa, justiça seja feita, a contribuição da Filosofia foi importante, pois o ajudou a sofisticar suas hipóteses sobre a falta, o ser, a alteridade, o desejo e, em última extensão, o objeto “a”, sua única contribuição original à revolução freudiana, como afirmou certa vez.

Portanto, diante disso, os filósofos poderiam se autorizar a dizer algo sobre Psicanálise, e o filósofo e também docente do Departamento de Filosofia da Universidade de São Paulo, Vladimir Safatle, banca o risco de ser tomado como mais um teórico que se imiscuiria numa área da qual supostamente nada poderia dizer; afinal, não é psicanalista e poderia se aproximar da trama conceitual da teoria psicanalítica apenas de um ponto de vista prioritariamente intelectual.

Cabe marcar que essa potencial crítica poderia ser formulada; afinal, não é incomum encontrarmos acadêmicos que lêem as obras de Freud e Lacan e as teorizam de um ângulo questionável, a partir de um discurso universitário, muitas vezes atravessado por um sistema filosófico que o próprio Freud já criticara, comparando-o à paranóia, que espera sempre tudo pronto, sem espaço para o que não se sabe, a incompletude, a incerteza ou aquilo que não se inscreve num sistema previsível e auto-referenciado.

Porém, não é bem isso que encontramos neste livro intitulado simplesmente de Lacan, da coleção Folha Explica, editado pela Publifolha, conseqüentemente bastante acessível a um grande número de pessoas, devido à distribuição quase sempre eficaz desse gigante complexo de mídia, responsável pela publicação do jornal Folha de S. Paulo, dentre outras produções jornalísticas.

Bem, e o que encontramos então na pena de Safatle? Uma lógica articulada em uma sucessão de recortes muito interessantes da obra lacaniana, até mesmo pelo fato desse livro ter apenas 96 páginas, uma característica da coleção, o que demanda do autor capacidade de síntese e o força a eleger alguns pontos de um percurso teórico derivado de décadas, como é aqui o caso de Jacques Lacan, autor de escritos mais oficiais e também de seminários estenografados e posteriormente transformados em livros, editados em nosso país pela editora carioca Zahar.

Portanto, o que mais chama atenção nesse livro e merece ser destacado, é justamente a eleição de tópicos que possibilitam uma apreensão de um aspecto crucial da obra lacaniana, que nunca subestimou a força da divisão do sujeito, alicerçando e sustentando uma clínica que diferenciava significativamente da prática psiquiátrica de então. Isso ocorreu por volta dos anos 30, época da defesa de sua tese de doutoramento, que girava em torno de outro olhar diagnóstico e, principalmente, de uma outra postura ética daquele a quem era atribuído um saber, considerando o Inconsciente como conceito central, especialmente depois das descobertas de Freud, que abalavam as hipóteses de degeneração psíquica que, na época, eram levadas em consideração.

Os quatro capítulos que abordam a trama conceitual iniciam-se pela aproximação do jovem psiquiatra Lacan em direção à importância da alteridade, do que já ia além das explicações ditas sociais sobre a importância do outro para a constituição da personalidade e, especialmente no caso da psicose, a virulência da relação imaginária com um outro que tem consistência exagerada, como no caso de Marguerite Anzieu, o verdadeiro nome de sua paciente Aimée, famoso caso clínico de Lacan, que raramente dizia algo de sua prática clínica, preservando certo sigilo.

Num segundo momento, evidencia-se a entrada de Lacan no mundo psicanalítico, quando inicia a análise com Loewenstein, filia-se à Sociedade Parisiense de Psicanálise e estuda mais sistematicamente com Kojeve abordando fundamentalmente a obra de Hegel, o que se pode tomar como um momento de influência da filosofia em seu pensamento, visto que as hipóteses acerca do Imaginário, do Simbólico e do Real começam a tomar forma, redundando em intersecções com o campo do estruturalismo, abrindo portas para noções como desejo, lugar e posição no laço social, o pai e sua positividade, além da questão da linguagem, como aponta o terceiro capítulo.

Já no quarto e derradeiro capítulo, destinado a elencar alguns tópicos essenciais, Safatle traz o momento mais visceral de Lacan, notadamente após 1960, no qual se aprofunda no Inconsciente mais freudiano. Lacan afirma ser a missão de sua vida esse retornar à Freud e revoluciona o mundo psicanalítico, inicialmente na França e depois pelo mundo, com seus conceitos, críticas e problematizações acerca do desejo e da ética do analista, da formação desse psicanalista, da institucionalização da Psicanálise, de suas impressionantes atitudes de desfiliação das instituições oficiais ligadas à IPA, bem como também de seus esforços para fundar escolas de Psicanálise que subvertessem certos dogmas e padrões que vigoravam até então, burocratizando a formação e robotizando a prática dos futuros psicanalistas.

Depois de Lacan, é muito difícil não se dar conta de que o próprio laço entre paciente e analista passou a ser pensado e concebido de outra forma, especialmente nas questões de tempo e dinheiro, do saber, do final de análise e da mudança de posição subjetiva do sujeito frente à sua própria divisão e ao gozo sobre o qual a análise lhe permitiu saber um pouco mais.

O Inconsciente, a partir de Freud e após Lacan, deve ser considerado de outra maneira, despatologizado e reconhecido como potência do ser falante frente aos discursos que o interpelam e, principalmente, como um representante radical de um aspecto da dimensão humana que não se adapta à norma social e, portanto, não pode, nem tampouco deveria ser tomado como algo anormal, que a Medicina elege como alvo e tenta eliminar, a serviço dos ideais homeostáticos da saúde, como preconizado pela Organização Mundial de Saúde.

Vladimir Safatle deixa isso bem claro nos estertores da conclusão, quando afirma que, a partir dessa posição mais crítica frente à medicalização da vida, “podemos compreender de outra forma a ânsia social em decretar a crise da Psicanálise. O que está em jogo aqui é não simplesmente um problema relativo à eficácia de uma prática clínica determinada. O que está em jogo é o sentido da noção de cura, de normalidade e o destino que queremos dar ao sofrimento psíquico”. (p. 79)

Mais ainda, em que lugar está o psicanalista nesse cenário? A leitura desse livro talvez desoriente, mas aumenta a possibilidade de repensar o lugar do psicanalista no mundo hoje, indicando a tradição que o precede, que inicia em Freud, passa por Lacan e clama por novos capítulos, episódios e marcas no mundo.

Nenhum comentário:

Postar um comentário

Obrigado por pensar junto...