CARTA ENDEREÇADA A FERENCZI EM 26/12/1912
“E agora, sobre Jung. Depois da reunião, às
11h, fizemos o passeio combinado, que tinha como objetivo uma conversa. Eu
perguntei diretamente o que ele tinha e o que significava sua insistência no
‘gesto de Kreuzlingen’. Então, ele veio com a reclamação que eu teria me
dirigido a seus inimigos, Biswanger e Häberlin, e impedido que ele me
encontrasse, pelo fato de comunicar a ele minha visita somente quando ele já
havia retornado. ‘O que o Sr. diria se
eu lhe escrevesse depois dizendo que havia estado na Wiene Neustadt?’.
Eu reconheci que isso não seria honesto de sua parte, mas que não era meu caso,
pois eu havia escrito sobre a viagem na quinta à noite, antes de Pentecostes, a
ele e a Biswanger, ou seja, naquele momento, ele também já deveria saber e poderia
ter vindo, se quisesse. Não, respondeu ele: ele teria recebido meu cartão
somente na segunda de manhã, quando já era tarde demais (já que parti na
segunda ao meio-dia). Eu permaneci firme, e então aconteceu algo totalmente
inacreditável e inesperado. Subitamente, ele disse a meia-voz: ‘No sábado e no
domingo estive ausente, velejando, e só voltei na segunda de manhã’. E aí, eu
tinha a faca e o queijo nas mãos, sabendo aproveitar bem a situação.
Perguntei-lhe se não havia tido a idéia de observar o carimbo do correio no
cartão, ou então perguntar à sua mulher, antes de me acusar detê-lo informado
propositalmente tarde demais. Quais repreensões faria a um paciente que não
fundamentasse de outra forma a sua suspeita? Ele estava absolutamente derrotado
e envergonhado, e admitiu tudo: que há muito tempo temia que a intimidade
comigo ou outros prejudicasse sua independência e que por isso decidira
recolher-se; que de fato, ele me construíra a partir do complexo paterno e tinha medo do que eu poderia dizer
de suas modificações, de seu particular modo de expressar-se; que ele
certamente não tinha motivos para estar desconfiado, que o ofendia ser visto
como um louco complexado, etc. Eu não o poupei de nada, disse-lhe calmamente
que uma amizade com ele não poderia ser mantida, que ele mesmo havia evocado
uma intimidade com a qual ele viria a romper tão brutalmente depois; que ele
não estava bem com o Homem, com o masculino em geral, não apenas comigo, mas
também com os outros; que ele repelia a todos depois de um certo tempo. Todos
os que estavam comigo provieram dele, por ele tê-los expulso; que o fato de se
referir à triste experiência com Honegger lembrava-me os homossexuais ou
anti-semitas, cujas tendências se manifestam depois de uma experiência com uma
mulher ou com um judeu. Que ele se comportava como um bêbado que grita
incessantemente: não acreditem que eu esteja bêbado, apresentando
inequivocamente uma reação neurótica; que eu me havia enganado sobre ele num
ponto, quando o considerei um dirigente nato que, através de sua autoridade,
poderia poupar aos outros muitos erros, mas ele não era assim, era imaturo e
descontrolado, etc. Ele não me contradisse e admitiu tudo. Penso que isso tenha
lhe feito bem. Se ele fosse alguém que conseguisse incorporar impressões vividas,
eu acreditaria numa mudança duradoura. Mas há um núcleo de falsidade em sua
natureza que lhe permitirá diluir as impressões. A invenção do gesto de
Kreuzlingen já tem esse caráter. Uma outra prova é a seguinte: ele jurou por
tudo no mundo não ser verdade que havia falado mal de mim, já no ano do
Congresso de Salzburgo, num repentino capricho, que depois passou. ‘O que dizem
as pessoas! Se eu quisesse acreditar no que falam sobre o Sr.!’. À noite falei
então com Jones, que me assegurou ter ele mesmo ouvido o tal discurso de Jung.
Jung despediu-se às 5 horas com as palavras: ‘O Sr. me encontrará sempre
devotado à causa’. Ficamos juntos até o momento da despedida. Infelizmente não
tive um bom dia. Cansado da semana e de uma noite em claro no trem, tive, à
mesa, uma crise de angústia, semelhante àquela no Essighaus em Bremen, quis
levantar-me e desmaiei por um momento. Mas eu mesmo me levantei e por algum
tempo tive náuseas, que à noite se transformaram em uma dor de cabeça e
bocejos, um resíduo de meus males de verão. Na noite de volta à Viena, dormi
muito bem e cheguei aqui muito bem.”
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