Resenha
do livro “Trabalhando com Lacan: na análise, na supervisão, nos seminários”
Trabalhar com Lacan, em seu divã como analisando, na poltrona sendo por
ele supervisionado ou na instituição, como um par, convenhamos, não é pouca
coisa, especialmente quando levamos em consideração o peso e a importância
desse personagem singular no cenário psicanalítico. Sendo assim, um livro que
compile testemunhos de quem trabalhou com Lacan durante os efervescentes anos
de desenvolvimento da psicanálise na França parece ser no mínimo interessante,
para além de uma evidente importância histórica.
Jacques Lacan encarnou e sustentou por toda a vida uma prática ousada,
extrapolou os limites de Paris, mobilizou pessoas, tornou-se cada vez mais
comentado e também valorizado, não apenas por repor nos trilhos a psicanálise
fiel aos pressupostos freudianos, inovando e subvertendo certos pressupostos
teórico-técnicos, mas principalmente porque também ampliou e sofisticou os horizontes
da criação freudiana, chamando-a de causa e, como disse certa vez, fazendo
disso a missão de sua vida.
É razoável supor então que os efeitos da convivência com Lacan possam ser
perceptíveis e, de alguma forma, transmitidos. Aliás, esse talvez seja o maior
mérito desse livro, projeto bem cuidado pelos organizadores, Alain Didier-Weill
e Moustapha Safouan, que entrevistaram onze psicanalistas que puderam
testemunhar sobre a experiência particular com Jacques Lacan. Naturalmente,
devemos estar advertidos quanto ao risco de tomar essa amostra como uma
representatividade genérica e totalizante de um mito e seu estilo, mas
Jean-Pierre Winter, por exemplo, destaca que o que mais chama sua atenção “nesse
burburinho em torno das tiradas de Lacan é o fato de envolver, com frequência,
tiradas relatadas fora de contexto e apresentadas como se se bastassem a si
próprias, independentemente da transferência daquele que relata as frases e,
sobretudo, dos eventuais efeitos que elas poderiam ter tido no tratamento. Efeitos
que faziam com que não fossem simplesmente ‘tiradas’, mas interpretações! Como
sabemos, para verificar em análise se uma interpretação é uma interpretação,
precisa-se do material que a ela se segue e do testemunho dos efeitos
subjetivamente ou não que ela pode ter favorecido.” (p.134)
Dessa forma, a caminhada fica um pouco mais segura, sem os riscos de uma
passagem por demais hagiográfica das narrativas de cada um dos entrevistados,
cada qual com “seu” Lacan particular, como se pudesse
haver um Lacan “verdadeiro” ou original, até mesmo porque, especialmente após
sua morte, começou a ocorrer uma consistente distorção em suas apostas, como,
por exemplo, nos tópicos do corte da sessão e do manejo com do dinheiro numa
análise, como se Lacan sempre fizesse
sessões relâmpago e o trato com o dinheiro fosse sempre espetacular. Não é bem o que encontramos em alguns
depoimentos, como é o caso de Colette Soler, quando declara que “não só não
tinha previsto, como não entendia os fundamentos daquela prática. Seus motivos,
suas razões, sua legitimidade me escapavam. No entanto, posso dar meu
testemunho de que, nessa perplexidade, nada havia de reivindicação que tantas
vezes ouvi sendo expressa por outros. E, de fato, posso dizer que, durante
tantos anos de analise, nem uma única vez tive a sensação de ter me faltado nem
tempo, nem a atenção especial que o analisando exige em geral. Questão de
demanda, evidentemente!” (p. 114)
Ou mesmo no depoimento de Patrick Valas,
comentando o resultado de algumas ausências de Lacan nas sessões, no começo de
1980:
“– Quanto lhe devo? – disse-lhe eu. – Porque,
afinal, o senhor me deixou na mão durante um mês.
Resposta:
– O senhor mesmo pode calcular.
Estimei que, no fundo, a ausência era
responsabilidade sobretudo minha, bastava eu ter telefonado mais cedo.
Calculei: um mês = tantas sessões + tantas supervisões = 5 mil francos.
– Não tenho essa quantia comigo, posso lhe
deixar um cheque caução, amanhã trago em dinheiro?
– Isso mesmo.
Preenchi o cheque e lhe perguntei:
– Ponho em nome de quem?
Berros de Lacan:
– Glória, Glória! Ela irrompe imediatamente.
– Ensine Patrick a fazer um cheque.
Ele, batendo os pés sem sair do lugar, eu,
voltando-me para ela:
– Em nome de quem?
Sem hesitar, ela disse:
– Em nome do Outro, com o O maiúsculo – e arrancou o cheque de mim nas barbas de Lacan.”
(p.131)
Afinal, se Lacan ousava sair dos padrões
oficializados pela IPA, tal postura, que lhe custou caro, estava a serviço das
análises ou supervisões, manejos sutis que ajudavam o sujeito a avançar na tarefa
de se confrontar com o próprio inconsciente ou dos pacientes que o procuravam,
como podemos depreender da fala de Adnan Houbballah, então um jovem analista,
que ao procurá-lo para uma supervisão, nos conta que Lacan “perguntou o
objetivo de minha visita e me explicou que começaríamos a supervisão da próxima
vez. ‘No começo’, disse ele, ‘serei pedagogo. Depois, será outra coisa’. Vinte
minutos após o início dessa primeira entrevista, evoquei a questão do dinheiro.
Expressei-lhe claramente minha situação: ‘Só posso pagar 100 francos’. Lacan
concorda. Soube depois que Lacan avaliava o preço de uma sessão em função de
seus efeitos no tratamento. Por exemplo, na minha volta do Líbano – de onde vim
arruinado, em 1975 –, só podia pagar 50 francos por minha supervisão. Ele
aceitou, com a condição de voltar à antiga tarifa quando a situação se
normalizasse. A supervisão durou 12 anos.” (p. 46)
Ou mesmo, em um contato supostamente informal,
antes mesmo do que se convenciona chamar de entrevistas preliminares, como descreve
a brasileira Marie-Christine Laznik, recém-chegada de um Brasil tomado pela
ditadura militar, com o nome de Lacan no bolso, supondo que pudesse ajudá-la
com alguma indicação, para o início de uma análise em solo francês. Lacan não
fornece nenhum nome, mas ao contrário, interroga-a de outro lugar e
perspectiva. Ouçamo-la: “Ocorre-me agora que, na nossa primeira entrevista,
Lacan me perguntou o que eu tinha feito no Brasil em termos profissionais.
Depois de me escutar, decidiu que eu devia fazer uma tese sobre ‘os ritos de
possessão no Brasil e sua eficácia’. Dito e feito, pegou o telefone e ligou pra
seu amigo Balandier. Sem ter pedido, vi-me catapultada ao encontro desse
professor para fazer um mestrado sobre os ritos de possessão. E, às voltas com esse
trabalho, volto a encontrar os ritos de possessão que estavam no princípio de
minha relação com ele. Não fiz essa tese, mas, anos depois, incentivei outra
pessoa a fazê-la. Acabo de entender as raízes do interesse de Lacan por essas
questões.” (p.71)
Esse era Lacan, um psicanalista apaixonado que
mantinha coerência entre o que dizia e o que fazia, mesmo em momentos nos quais
os mecanismos da psicologia das massas predomina, quando o grupo sobrepõe o bom
senso que deveria imperar, como por exemplo nas instituições psicanalíticas
fundadas por Lacan. Claude Dumezil pode explicar melhor: “Suas palavras
equivaliam, me parece, a dizer: ‘Sobretudo, não se tome por um grande Outro,
você está simplesmente sendo aceito como AE da EFP’. Gostaria de dizer ainda
uma palavra sobre o modo como Lacan tratava o analítico na instituição. É sobre
a montagem dos títulos na Escola. Havia os analistas praticantes (AP), os
analistas membros da Escola (AME) e os analistas da Escola (AE). Isso remetia à
clássica diferenciação entre estagiário, associado e titular. Claro, não era
nada disso. A estrita definição dessas diferentes categorias de membros
subvertia completamente a ideia de gradus.
Era feita para isso. Não havia ordem preestabelecida para se ter acesso a esses
títulos. Ser AE não implicava, em absoluto, portar este ou aquele outro título.
Declarar-se psicanalista era a razão do título de analista praticante; o de AME
dependia de uma competência; o de AE dependia de uma performance. É fácil
perceber que se, por algum descuido, esses três títulos tentassem aqueles que
estivessem buscando honrarias, ele perderiam a viagem – de fato, bem
decepcionados: como ser incauto em relação a um título que você mesmo se
concedeu (AP), ou em relação a um título que só vale competência (AME), quando
há os que voam nas altas esferas da performance (AE)? Quanto a estes, os AE,
que se aventuraram nessa esquiva da análise didática, sua qualificação de
analista da experiência da Escola não valia a habilitação de praticante. Cada
sigla – AP, AME, AE – remetia o portador a ficcionalizar a própria noção de
título. Tratava-se apenas de colocar em perspectiva as três categorias de
membro, e casa um podia sentir, como analisando, o sentido ético da
impossibilidade estrutural de uma habilitação totalizadora.” (p. 41)
Lacan ousava, não hesitava em criar, inovar e
subverter os padrões, aliás decididamente não tomava as recomendações de Freud
como um tabu. Certa vez, disse que discordava muito do psicanalista inglês
Donald Winnicott, mas que respeitava sua flama de psicanalista. Ë disso que se
trata, de uma flama que impulsiona o psicanalista, em intrínseca conexão com o
desejo de analista, como nos mostra Alain Didier-Weill: “Quero trazer
alguns exemplos concretos que evidenciem de que modo Lacan podia não resistir.
Podia, no caso, aceitar certas propostas que fui levado a lhe fazer de inovar
em alguns pontos do tratamento: aceitou, por exemplo, o pedido que formulei num
momento dado de fazer, dentre as nossas sessões, ao menos uma semanal, por
escrito. Assim, durante dois anos, enviei pelo correio sessões escritas, junto
com uma nota de 500 francos. Outro exemplo. Quando concluí minha análise com
ele e me propôs prosseguirmos nosso trabalho com uma supervisão, fiz a seguinte
contraproposta, que ele aceitou: será que poderíamos tomar ‘em supervisão’
tanto o analista Lacan que me analisou durante dez anos quanto o analista que
eu tinha me tornado naquele tratamento? No caso, será que seria possível, no
só-depois, formular questões teóricas a partir do saber inconsciente revelado
aos dois pela experiência compartilhada? Mais particularmente, questões às
quais a teoria de Freud e de Lacan pareciam não responder? Foi com esse
procedimento, possibilitado por Lacan, que aprendi tudo o que sei do
inconsciente. Por outro lado, aquela foi a oportunidade de compreender o que
para ele era o passe, esse tempo mediante o qual um devindo analista tinha não
de inventar a psicanálise – isto já estava feito –, mas de fazer passar sua
forma de reinventá-la.” (p.33)
à guisa de conclusão, ler esse livro,
deixando-se tocar pelas narrativas, fazendo comparações, estabelecendo
analogias, refletindo cuidadosamente, pode ser um bom exercício, de pensar o
passado, vislumbrar um pedaço da história da psicanálise. Afinal, saber do
passado nos faz reformular o presente, mas fundamentalmente, nos ajudar a
inventar um futuro diferente. É disso que a psicanálise precisa para continuar
existindo no mundo.
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