Resenha do livro: “A guarda dos filhos na
família em litígio: uma interlocução da Psicanálise com o Direito” de Lenita
Pacheco Lemos Duarte. A guarda dos filhos na família em litígio: uma interlocução da
Psicanálise com o Direito. Rio de Janeiro: Lumen Juris,
2006, 236 p.
A Psicanálise em extensão, na
maioria das vezes, possibilita interessantes conexões, causando e aturdindo
pesquisadores de outras disciplinas e saberes, pois suas hipóteses escapam do
lugar comum. No caso do Direito, em particular, podemos nos lembrar de Freud, que
problematizava a questão do parricídio a partir de sua leitura de Dostoievsky, ou
ainda Jacques Lacan, com suas contribuições sobre a criminologia, dois bons
exemplos que derivam dessa intersecção.
E esse livro de Lenita Pacheco
Lemos Duarte se filia a essa tradição, pois a partir de sua prática cotidiana e
de suas pesquisas para a dissertação de Mestrado, traz a luz um ótimo trabalho,
que serve tanto aos psicanalistas que acolhem crianças em seus consultórios e
instituições, bem como também aos juristas e advogados que ousem levar em
consideração a dimensão da subjetividade, na força do inconsciente enquanto
potência subversiva presente nos laços sociais e, especialmente, na delicada inter-relação
do sujeito com a lei, momento no qual o Direito, por excelência, é convocado a
atuar.
Nas varas de família, é
bastante usual a atuação de psicólogos na mediação dos complicados casos de
separação do casal parental, até mesmo porque o casamento persiste como uma
instituição valorizada culturalmente, supostamente garantidora de saúde
psíquica para o casal e, para a família, especialmente quando este casal gera
ou adota uma criança. Isso aliás é um fato bastante curioso e digno de nota: a
criança faz surgir uma família aos olhos da lei e, na separação, na ruptura
desse projeto coletivo, esta mesma criança ocupa lugares diferentes, que
merecem uma análise mais detida, para além das generalizações apressadas.
A autora não foge desse
desafio, problematiza e transforma em objeto de investigação certos aspectos desse
cenário tão delicado e complexo, fazendo bom uso de um encadeamento das
diversas contribuições das pesquisas psicanalíticas, desde a constituição
subjetiva dos seres de linguagem, passando pela questão do registro simbólico –
que está intimamente relacionado com a Lei, muitas vezes confundida com a lei
–; dos laços sociais, da criança e da família, chegando por fim à clinica
psicanalítica com “sujeitos crianças”, demarcando uma importante diferença, a
do sujeito para a Psicanálise e a de sujeito para o Direito. E quando isso
aparece? Nos exemplos e casos clínicos extraídos de prática da autora na vara
de família. Suas palavras ilustram e colabora para vislumbrarmos melhor este cenário
no qual se desenrolou essa pesquisa, um convincente parágrafo que resume bem a essência
desse livro:
As constantes mudanças nas
organizações familiares constituem desafios da atualidade que trazem muitas
questões para o exercício da clínica analítica, principalmente com o sujeito
criança. É aí que o analista é demandado e cobrado numa interlocução com o
social – a família, a escola, o jurídico e/ou a área de saúde – a produzir um
saber, seja por meio de pedidos de laudos, seja por intermédio de orientações
que possam produzir modificações na conduta das crianças. Nos litígios, os
filhos vivenciam os conflitos familiares, muitas vezes, como espectadores,
protagonistas e vítimas de diversas situações, e acabam se transformando em
mais um “bem” – aqui entendido como “objeto” – dentre os bens pelos quais se
briga e pelos quais se briga e pelos quais se compete e se goza para se
conseguir a sua posse, a sua “guarda”, não importando as conseqüências para
eles nem os meios usados para alcançar tal objetivo. Simultaneamente aos dramas
familiares, os filhos têm que tirar notas boas na escola, serem obedientes,
saírem vitoriosos nas competições esportivas, aceitar as sentenças jurídicas em
relação às visitas quinzenais com o genitor que não detém a guarda e os novos
parceiros amorosos dos pais, além de outras exigências. Enfim, têm que se
submeter a determinadas normas instituídas pelos pais e pela justiça, na grande
maioria dos casos, com poucas chances de escolha. As crianças precisam
acompanhar o desejo do genitor que domina a cena, que detém o poder assegurado
pela instituição da guarda. E o psicanalista é demandado a responder pelos
fracassos e sintomas das crianças e, em muitos casos, é também solicitado pela
“criança sofrida“ que existe em cada pai, em cada mãe e em outros familiares.
(p. 209)
Há uma parte desse livro que se
destaca, o capítulo no qual Lenita Duarte se debruça sobre o que chama de
“estudos de casos”; nos quais apresenta suas estratégias para abordar um real
que surge como “produto” de separações e rupturas, nem sempre razoáveis, ocorridas
inicialmente entre um homem e uma mulher, mas muitas vezes explicitados pela
criança que nasceu dessa união. Criança que traz um sintoma, encarna um
sintoma, produz um sintoma para essa família, mas, sobretudo, que sofre e que
precisa ser escutada, pois a lei dos homens, moralizante e pretensamente reguladora,
não parece ser suficiente nesses momentos narrados por Lenita: alguns cruéis,
com personagens que parecem extraídos de histórias ou narrativas que achamos em
livros ou filmes que nos assustam e nos fazem duvidar de sua veracidade. O
conceito lacaniano de gozo colabora de maneira significativa para compreendermos
a dimensão dessas problemáticas que afligem e enredam os personagens trazidos
por Lenita, pois clarifica muito de um a-mais que o Direito não consegue
alcançar. Compreender não é o mesmo que tolerar, parafraseando Freud, mas
talvez permita aos profissionais envolvidos nesse campo engendrar novas
estratégias que os permitam atuar nesses casos tão complicados.
Afinal, o mal estar nas relações
e nos laços sociais parece ser inevitável, mas o que a Psicanálise parece
apontar, e apostar, é na possível saída que cada um pode encontrar para viver
em grupo, não fazendo do outro um objeto que sirva a intenções e propósitos
bastante obscuros.
Desse modo, é conveniente lembrar
uma questão que Freud se fazia: por que, dentro dos mandamentos bíblicos, seria
necessário o alerta para o “não matarás!”? É muito cômodo e tranqüilizador
pensarmos que esses atos bizarros poderiam ser realizados apenas pelos loucos,
que a Medicina, pela via da Psiquiatria trataria de enclausurar quimicamente ou
somente pelos perversos, que o Direito cuidaria de isolar em muros concretos. A
relação com a lei vale para todos, bem como com a Lei e dessa talvez a
Psicanálise tenha algo a dizer. Esse livro corrobora essa hipótese.
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