BLOG QUE TRATA DE PSICANÁLISE

Um blog que diz de Freud, Lacan, Psicanálise, subjetividade, condição humana e outros assuntos afins, quase sempre muito interessantes...

quinta-feira, 9 de maio de 2013

RESENHA DE A GUARDA DOS FILHOS NA FAMILIA EM LITIGIO

Publicada originalmente na Marraio 21, Sete Letras, Rio de Janeiro, 2011


Resenha do livro: “A guarda dos filhos na família em litígio: uma interlocução da Psicanálise com o Direito”  de Lenita Pacheco Lemos Duarte.  A guarda dos filhos na família em litígio: uma interlocução da Psicanálise com o Direito. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2006, 236 p.
 
A Psicanálise em extensão, na maioria das vezes, possibilita interessantes conexões, causando e aturdindo pesquisadores de outras disciplinas e saberes, pois suas hipóteses escapam do lugar comum. No caso do Direito, em particular, podemos nos lembrar de Freud, que problematizava a questão do parricídio a partir de sua leitura de Dostoievsky, ou ainda Jacques Lacan, com suas contribuições sobre a criminologia, dois bons exemplos que derivam dessa intersecção.
E esse livro de Lenita Pacheco Lemos Duarte se filia a essa tradição, pois a partir de sua prática cotidiana e de suas pesquisas para a dissertação de Mestrado, traz a luz um ótimo trabalho, que serve tanto aos psicanalistas que acolhem crianças em seus consultórios e instituições, bem como também aos juristas e advogados que ousem levar em consideração a dimensão da subjetividade, na força do inconsciente enquanto potência subversiva presente nos laços sociais e, especialmente, na delicada inter-relação do sujeito com a lei, momento no qual o Direito, por excelência, é convocado a atuar.
Nas varas de família, é bastante usual a atuação de psicólogos na mediação dos complicados casos de separação do casal parental, até mesmo porque o casamento persiste como uma instituição valorizada culturalmente, supostamente garantidora de saúde psíquica para o casal e, para a família, especialmente quando este casal gera ou adota uma criança. Isso aliás é um fato bastante curioso e digno de nota: a criança faz surgir uma família aos olhos da lei e, na separação, na ruptura desse projeto coletivo, esta mesma criança ocupa lugares diferentes, que merecem uma análise mais detida, para além das generalizações apressadas.
A autora não foge desse desafio, problematiza e transforma em objeto de investigação certos aspectos desse cenário tão delicado e complexo, fazendo bom uso de um encadeamento das diversas contribuições das pesquisas psicanalíticas, desde a constituição subjetiva dos seres de linguagem, passando pela questão do registro simbólico – que está intimamente relacionado com a Lei, muitas vezes confundida com a lei –; dos laços sociais, da criança e da família, chegando por fim à clinica psicanalítica com “sujeitos crianças”, demarcando uma importante diferença, a do sujeito para a Psicanálise e a de sujeito para o Direito. E quando isso aparece? Nos exemplos e casos clínicos extraídos de prática da autora na vara de família. Suas palavras ilustram e colabora para vislumbrarmos melhor este cenário no qual se desenrolou essa pesquisa, um convincente parágrafo que resume bem a essência desse livro:
 
As constantes mudanças nas organizações familiares constituem desafios da atualidade que trazem muitas questões para o exercício da clínica analítica, principalmente com o sujeito criança. É aí que o analista é demandado e cobrado numa interlocução com o social – a família, a escola, o jurídico e/ou a área de saúde – a produzir um saber, seja por meio de pedidos de laudos, seja por intermédio de orientações que possam produzir modificações na conduta das crianças. Nos litígios, os filhos vivenciam os conflitos familiares, muitas vezes, como espectadores, protagonistas e vítimas de diversas situações, e acabam se transformando em mais um “bem” – aqui entendido como “objeto” – dentre os bens pelos quais se briga e pelos quais se briga e pelos quais se compete e se goza para se conseguir a sua posse, a sua “guarda”, não importando as conseqüências para eles nem os meios usados para alcançar tal objetivo. Simultaneamente aos dramas familiares, os filhos têm que tirar notas boas na escola, serem obedientes, saírem vitoriosos nas competições esportivas, aceitar as sentenças jurídicas em relação às visitas quinzenais com o genitor que não detém a guarda e os novos parceiros amorosos dos pais, além de outras exigências. Enfim, têm que se submeter a determinadas normas instituídas pelos pais e pela justiça, na grande maioria dos casos, com poucas chances de escolha. As crianças precisam acompanhar o desejo do genitor que domina a cena, que detém o poder assegurado pela instituição da guarda. E o psicanalista é demandado a responder pelos fracassos e sintomas das crianças e, em muitos casos, é também solicitado pela “criança sofrida“ que existe em cada pai, em cada mãe e em outros familiares. (p. 209)
 
Há uma parte desse livro que se destaca, o capítulo no qual Lenita Duarte se debruça sobre o que chama de “estudos de casos”; nos quais apresenta suas estratégias para abordar um real que surge como “produto” de separações e rupturas, nem sempre razoáveis, ocorridas inicialmente entre um homem e uma mulher, mas muitas vezes explicitados pela criança que nasceu dessa união. Criança que traz um sintoma, encarna um sintoma, produz um sintoma para essa família, mas, sobretudo, que sofre e que precisa ser escutada, pois a lei dos homens, moralizante e pretensamente reguladora, não parece ser suficiente nesses momentos narrados por Lenita: alguns cruéis, com personagens que parecem extraídos de histórias ou narrativas que achamos em livros ou filmes que nos assustam e nos fazem duvidar de sua veracidade. O conceito lacaniano de gozo colabora de maneira significativa para compreendermos a dimensão dessas problemáticas que afligem e enredam os personagens trazidos por Lenita, pois clarifica muito de um a-mais que o Direito não consegue alcançar. Compreender não é o mesmo que tolerar, parafraseando Freud, mas talvez permita aos profissionais envolvidos nesse campo engendrar novas estratégias que os permitam atuar nesses casos tão complicados.
Afinal, o mal estar nas relações e nos laços sociais parece ser inevitável, mas o que a Psicanálise parece apontar, e apostar, é na possível saída que cada um pode encontrar para viver em grupo, não fazendo do outro um objeto que sirva a intenções e propósitos bastante obscuros.
Desse modo, é conveniente lembrar uma questão que Freud se fazia: por que, dentro dos mandamentos bíblicos, seria necessário o alerta para o “não matarás!”? É muito cômodo e tranqüilizador pensarmos que esses atos bizarros poderiam ser realizados apenas pelos loucos, que a Medicina, pela via da Psiquiatria trataria de enclausurar quimicamente ou somente pelos perversos, que o Direito cuidaria de isolar em muros concretos. A relação com a lei vale para todos, bem como com a Lei e dessa talvez a Psicanálise tenha algo a dizer. Esse livro corrobora essa hipótese.

Nenhum comentário:

Postar um comentário

Obrigado por pensar junto...