Resenha
de “O livro negro da Psicanálise”
Organização de
Catherine Meyer; com Mikkel Borch-Jacobson... [et al.]; tradução de Simone
Perelson e Beatriz Medina. O livro negro
da Psicanálise: viver e pensar melhor sem Freud. Rio de Janeiro: Civilização
Brasileira, 2012, 638 p.
Criticar a Psicanálise não é tarefa fácil, especialmente quando se trata
de críticas construtivas, que genuinamente visam colaborar para o aprimoramento
do que está sendo objeto de um debate honesto. Porém, quando está em jogo certo
tipo de crítica que se origina de outras intenções, mais questionáveis e que
tem como objetivo central demolir a invenção freudiana, certamente merece um
olhar menos ingênuo e mais atento. É com esse olhar que se deve ler O livro negro da Psicanálise: viver e pensar
melhor sem Freud, panfleto pensado e estruturado por Catherine Meyer, com o
apoio de alguns outros autores, já conhecidos na esfera do revisionismo e da
crítica afetada a tudo que se refere à Psicanálise.
Sendo assim, o leitor mais desavisado não deve se surpreender com o tom
que se descortina nas mais de 600 páginas da edição brasileira, ainda menos
extensa que a edição francesa, de mais de 800 páginas, originalmente lançada em
2005, com grande repercussão na mídia como, aliás, é peculiar a qualquer outro
tipo de ataque a Freud e sua obra. Até então, não temos nenhuma novidade, talvez
apenas mais um capítulo do que nos Estados Unidos usualmente se chama de Freud Bashing, ou “bater em Freud”, termo
que condensa as múltiplas formas de espancamento midiático que sempre tem como última
mirada desqualificar o inventor da Psicanálise e, principalmente, cobrir de desconfiança
e descrédito tudo que envolve o campo psicanalítico.
Seriam necessárias muitas páginas nesta resenha para descrever a sucessão
de artigos que, com raras exceções, merecem ser acolhidos com deferência neste livro;
pois o que se delineia, na maioria deles, especialmente em termos de enunciado
recorrente, nada mais é do que uma intensa saraivada de investidas, ataques,
desaprovações e censuras a tudo que diga respeito ao universo psicanalítico,
temperadas com uma implacável dose de criticismo impiedoso e exarcebado, beirando
a obscenidade.
A estrutura central desse petardo gira em torno de um claro intuito
latente, que surge nas entrelinhas e que pode ser captado pela linearidade dos
capítulos, títulos e seções específicas: num primeiro momento desqualificar a Psicanálise,
tirando-a de seu suposto domínio hegemônico de compreensão e tratamento dos
males da subjetividade humana e, posteriormente, efetuar uma troca pelas
terapias comportamentais cognitivas e medicações variadas, tão típicas dessa
época de certezas e respostas rápidas.
Elegendo alguns recortes específicos, podemos notar que o livro se inicia
com uma notável indignação: por que a Psicanálise continua viva e forte em
algumas partes do mundo e, em outras, parece quase sumir, revestindo-se de
notável diminuição de importância? Alguns números são apresentados, ainda que
carentes de confirmações estatísticas e de fontes confiáveis, como espera a
pesquisa científica séria. Um exemplo banal: um dos autores, no afã de demonstrar
que a Psicanálise e os psicanalistas estão sumindo no mundo, afirma não existir
mais de três mil psicanalistas em todo o planeta. Bem, basta debruçar sobre qualquer
entrevista com psicanalistas que representam instituições psicanalíticas e notar
que quando as descrevem, nos fazem notar que quase sempre dizem do número de
associados, e comumente estes números ultrapassam centenas em cada uma delas,
contabilizando todos que nelas gravitam. Uma conta rápida de multiplicação demonstrará
que esse número é nitidamente subdimensionado, pois existem incontáveis
instituições psicanalíticas mundo afora. Basta apenas conversar com colegas que
participam de encontros mundiais de escolas de Psicanálise, e podemos notar que,
ano após ano, milhares afluem a cada um desses congressos, e caso seja
necessário, é sempre possível também efetuar visitas aos sites oficiais das respectivas instituições, que trazem a lista de afiliados,
que parece sempre aumentar, ano após ano. Marque-se ainda ser plausível incluir
também os psicanalistas que atuam de forma mais independente e que, portanto,
não se filiam às escolas de Psicanálise e associações de psicanalistas mundo
afora, talvez num número inapreensível.
Os casos paradigmáticos de Freud, desde o começo, ainda nos estudos sobre
a histeria, junto a Breuer, como por exemplo, Anna O. e Katharina, passando
pelo Homem dos Lobos, Schereber e outros, são cuidadosamente esmiuçados, mas de
uma perspectiva nitidamente viesada, que objetiva apenas colher elementos para
comprovar a desonestidade científica e intelectual de Freud, suas manipulações
cínicas dos resultados, a consequente a-cientificidade de seu método, a pouca
eficácia terapêutica do tratamento psicanalítico, além das táticas por ele engendradas
e depois aperfeiçoadas pelos seguidores com o fito de blindar a Psicanálise das
críticas e da suposta fragilidade de sua organicidade conceitual e clínica,
visto que é tão somente fruto do delírio de seu criador.
Esse pressuposto básico não serve apenas como pano de fundo da obra;
serve também como suporte para as estratégias de confronto endereçadas à
Psicanálise e a seus grandes nomes. Começando com o próprio Sigmund Freud,
passando por Jacques Lacan, Bruno Bettelheim, Françoise Dolto e outros, integrantes
de um grande conjunto de mistificadores e responsáveis por inúmeros erros,
distorções propositadas, generalizações apressadas e, principalmente, de
influências nefastas no imaginário popular, que na concepção de alguns autores
do livro, seria presa fácil desses grandes comunicadores, portadores das
“verdades” que adivinham do que o livro qualifica como mitos psicanalíticos. O clima bélico que atravessa cada um dos
capítulos é permanente, não há boa vontade ou mesmo compreensão razoável que
pudesse levar em consideração a época, o período histórico ou o momento
particular de cada um desses grandes nomes, inclusive a condição de seres
humanos, passíveis de enganos e equívocos como quaisquer outros, humanos,
demasiadamente humanos. Não, a nítida má vontade que salta aos olhos a cada
parágrafo é a tônica vigente, com condenações que se sucedem, quer seja
apontando a vilania de Freud em analisar incestuosamente a própria filha ou
tiranizar sexualmente a cunhada que dele dependia economicamente, a cegueira
egocêntrica de Lacan em se pretender o portador exclusivista da “verdadeira” Psicanálise
após Freud com sua legião de seguidores fascinados e alienados à sua palavra e
imagem pirotécnica, a dissimulada falta de caráter de Bettelheim, impostor que
mistificava curas e culpabilizava irresponsavelmente as mães dos autistas que
atendia em sua clínica ou ainda a postura arrogante de Dolto, responsável pela
“psicanalização” da França, em especial na educação e nas relações familiares,
que supostamente passariam a depender de um manual de sobrevivência freudiano
ou mesmo em tratamentos com psicanalistas que tomavam avidamente a rede francesa
de serviços públicos, monopolizando a oferta terapêutica e criando uma rede
circular de oferta e demanda, inescapável para os que lá chegavam em busca de
ajuda específica.
Por mais incrível que pareça, alguns capítulos se destacam pelo despropósito,
beirando o non-sense. Num deles, é
tratado o que foi chamado de “desconversão” de um jovem psiquiatra,
influenciado pela Psicanálise desde o começo de sua formação acadêmica, mas
que, ao tomar contato com um dos autores, é convidado a passar pela tal terapia
de orientação cognitiva-comportamental, que pôs em xeque suas crenças sobre o
inconsciente e outras terminologias psicanalíticas que o impediam de ajudar
efetivamente seus pacientes. No final desse “tratamento”, há o coroamento do
processo, para satisfação do autor, com a matrícula do jovem psiquiatra em um
curso breve de TCC, que servirá como referencial teórico a partir de então,
salvando-o da influência nefasta da Psicanálise.
Outro capítulo traz em seu bojo algumas narrativas de pacientes que
conseguiram escapar das garras dos psicanalistas, especialmente as mães de
crianças autistas, ou ainda pacientes que só puderam compreender os malefícios
dos quais foram vítimas após o encontro com terapeutas comportamentais e, que
graças a essa técnica, alcançaram a compreensão da amplitude do perigo que
corriam. Sim, essa é uma das tentativas que ultrapassam o desqualificar
sistemático da Psicanálise, pois tem como intuito também apontar o perigo e os
graves riscos de se entregar a uma experiência psicanalítica, empreitada que
causa dependência, alienação, desfaz casamentos, envenena a vida familiar e,
sobretudo, enriquece os bolsos dos analistas gananciosos, que aprenderam desde a
origem, com o mestre fundador, em Viena, que adorava o dinheiro.
Após esse cenário de terra arrasada, chega então a parte que acaba
revelando a verdade que subjazia a sucessão de ataques da artilharia pesada dos
detratores da obra freudiana: o posicionamento de algo no lugar do que foi destruído, a saber, as descobertas da
neurociência, os pretensos avanços das terapias comportamentais e cognitivo-comportamentais,
além de um evidente destaque para os medicamentos que a psicofarmacologia,
mancomunada com os interesses da indústria farmacêutica, oferta diuturnamente
como solução mágica para a dureza da vida cotidiana, do mal-estar presente na
divisão subjetiva do humano e do laço com o outro. Obviamente nada disso é
levado em consideração, mas apenas e tão somente os aspectos funcionais do
comportamento humano, bem como supostas desordens e transtornos de origem
orgânica ou afins, numa questionável leitura empobrecida da condição humana.
Considerar meramente este livro como um absurdo pareceria ser razoável, mas
com isso estaríamos incorrendo num erro, aceitar um pseudodebate que só
interessa a um lado, pois o que está em questão não é a supremacia de uma
abordagem terapêutica ou outra, nem mesmo uma hierarquização dos efeitos e
resultados desse ou daquele tratamento psicoterapêutico, mas sim uma intenção
mais ardilosa e que precisa ser explicitada em profundidade. A principal razão
do lançamento deste livro no território francês foi um movimento engendrado
pelos psicoterapeutas de orientação comportamental na França, pois se sentiam
alijados dos serviços públicos de saúde, bem como na mídia, quando comparados
aos psicanalistas, que segundo eles, detêm o controle hegemônico nesse campo da
saúde pública e nos consultórios particulares. Tal movimento visou excluir o
tratamento psicanalítico, inicialmente no campo do autismo, depois ampliando
esse argumento para outras demandas terapêuticas, não apenas no serviço
público, bem como na relação com os convênios e planos de saúde, com uma clara
conexão entre essa estratégia mercadológica e o lançamento do livro. Aliás, o
termo “livro negro” remete aos crimes perpetrados contra grupos, classes ou
raças durante a história da Humanidade.
Coincidentemente, este livro é lançado no Brasil em 2012, e para assombro
de muitos, tem início, ao menos no Estado de São Paulo, um movimento análogo ao
francês, que tem como meta estipular como exclusividade a orientação
comportamental-cognitiva no tratamento a autistas, em oposição ao tratamento
psicanalítico, tido como pseudocientífico, considerado ineficaz terapeuticamente
e pouco produtivo em termos de quantidade de atendimentos, especialmente quando
comparado à díade adestramento-medicação, símbolo da avalanche adaptacionista
que deu mostras de quão virulentos podem ser os ataques. Freud, na clássica entrevista
que deu à BBC, pouco antes de morrer, deixou claro que a batalha ainda não
havia terminado. Suas palavras mais uma vez demonstram impressionante
capacidade de antevisão. Que este livro negro chacoalhe os psicanalistas e que
as respostas venham vigorosamente, pois em vez de destruir a Psicanálise, como
adorariam os autores, provavelmente estão tornando-a mais forte. Um efeito
rebote admirável...
Nenhum comentário:
Postar um comentário
Obrigado por pensar junto...