Publicado originalmente no site do Instituto Àgora: http://www.agorainstitutolacaniano.com.br/livros_2.html
Resenha do livro "Psicanálise e educação: sobre Hefesto, Édipo e outros desamparados dos dias de hoje." De Andrea Brunetto, Campo Grande, MS: Ed. UFMS, 2008, 111 p.
O campo da intersecção
entre a Psicanálise e a Educação é conhecido, especialmente no Brasil, pela
intensa produção teórica, representada pelos muitos artigos, livros,
dissertações e teses que são publicados regularmente, não apenas a partir dos psicanalistas
interessados pelo tema, mas também por educadores afetados pelo referencial
psicanalítico. Os frutos são diversos e a questão da educação em nosso país
parece ser suficiente para justificar esforços ungidos pela boa intenção, ainda
que seja necessária uma cuidadosa dose de bom senso na arquitetura dessa
intersecção, com todos os riscos que essa empreitada possa ter, visto que os
dois campos, em essência, são antagônicos e visam algo muito distinto.
Mesmo assim, esse
caminho, originalmente fundado por Anna Freud; incentivada pelo pai e também
por um importante interlocutor, Oskar Pfister, considerado o pioneiro das
pesquisas nessa interessante e profícua extensão do saber psicanalítico,
continua aberto e, ao que parece fecundo.
E podemos dizer isso, porque
essa aposta permite várias possibilidades, sempre tendo um olhar endereçado à
presença do inconsciente vetorizando os laços presentes no ato educativo, tanto
pela via informal, como quando um pai educa um filho, bem como também na
Educação mais formal, no sistema escolar oferecido pela Cultura; com suas
múltiplas vicissitudes, muitas vezes transformadas em objetos de investigação
pelas mãos de pesquisadores hábeis.
Devemos dizer também profícua
porque permite pensar em outros ângulos de algumas questões que sempre
interrogam como, por exemplo, a relação entre professor e aluno, as múltiplas
dificuldades de aprendizagem e ensinagem, o fracasso escolar e outros sintomas
sociais, a violência e a eclosão de certos fenômenos que supostamente deveria ser
alheio ao cotidiano escolar, além de um ponto aqui que nos interessa em
particular, o das crianças ditas anormais, que fogem à norma, a uma normalidade
homogeneizante e tão condizente com as pré-condições necessárias – porém
questionáveis, visto que se transformam em parâmetros ideais – para que a
escola funcione nos moldes atuais.
Essas crianças,
curiosamente, são chamadas de especiais,
e não sabemos se isso deriva de uma especialidade, se deveria ser alvo da
atenção apenas de especialistas ou se são, como parece, uma exceção, distorcida
por um termo que num primeiro olhar parece positivo, mas quando pensado à luz
da hipótese do que os psicanalistas chamam de formação reativa, acaba por
desvelar a carga de preconceito que os malabarismos semânticos não conseguem
ocultar eficazmente.
E é justamente dessas
crianças que Andréa Brunetto trata neste livro, derivado de sua dissertação de
mestrado, no Departamento de Educação da Universidade Federal de Mato Grosso do
Sul; não aquelas portadoras de uma deficiência física, anatomicamente confirmada
e verificada no olhar do leigo e do expert,
mas as que se enquadrariam naquilo que se convencionou chamar de deficiência
mental, seus efeitos e conseqüências nas vidas dessas crianças e dos adultos
que a cercam. Seres que, ao que parece, não detém uma mente supostamente eficiente,
que foram tão intensamente retratadas por Maud Mannonni (1985) em seu já
clássico A criança retardada e a mãe,
livro que, aliás, temia publicar, inibição que foi barrada por seu analista
Jacques Lacan, marcando a importância de sua publicação.
O tempo demonstrou que
Lacan estava correto, visto que esta obra acabou por se tornar um clássico, alicerçando
o que se pensa hoje sobre a falsa debilidade
mental. Andréia Brunetto também não se inibiu; como é muito comum em mestres e
doutores após a defesa e traz a publico este Psicanálise e Educação: sobre Hefesto, Édipo e outros desamparados dos
dias de hoje, para colaborar com a reflexão sobre este tema tão delicado e
atual, a segregação do diferente, algo que a globalização não conseguiu
extinguir; mas que, ao contrário, parece ter potencializado como vemos
cotidianamente na mídia.
O social, até como
tentativa de remediar essa situação, em contraponto a uma escola que funcionava
de modo segregacionista, lança então em nível mundial a difusão da proposta de
uma inclusão generalizada, inicialmente pensada como uma proposição que tem em
sua essência a idéia de uma escola que possa acolher a todos sem exceções,
independentemente de dificuldades prévias ou adaptativas, potenciais aquém ou
além do idealmente esperado e, especialmente, que ajude por meio dessa
iniciativa a favorecer o desenvolvimento das pessoas, o bem comum e a equidade
nas chances em uma sociedade que funciona estruturalmente, como sabemos, de
forma a manter a desigualdade.
E é nesse ponto que a
autora centra seus esforços de problematização, num exemplo honesto de
Psicanálise em extensão, daquilo que ultrapassa a clínica pensada em termos strictu sensu, do tratamento das
neuroses. Analisar, como mostra etimologicamente a palavra, é dividir em
pequenas partes e, num primeiro momento, deter-se nelas para então, num
movimento subseqüente, praticar exercícios de junções, relações, aproximações e
afastamentos, para então poder obter-se algo novo com relação ao ponto inicial.
Esse percurso metodológico é feito com a temática do deficiente, provocando o leitor
a pensar essa noção historicamente, desde os gregos, as significações dadas ao
diferente em variadas épocas, tanto num sentido de discriminação bem como
também de valorização, mostrando como ao longo da História este tema inquieta
as sociedades, passando pelos ideais mais modernos, chegando à criação da
norma, com o corpo sendo tomado de assalto pela Medicina e não mais pelas
religiões e seus dogmas.
Com isso, o corpo
também passa a ser mensurado, imaginarizado em torno de ideais estatísticos e
controlado pela ciência, que evita a todo custo a não eficiência. Com isso, o
terreno está fertilizado e pronto para fazer surgir a histeria que, como nos
mostra a história da Psicanálise, ensina Freud a criar este campo que postula
algo que trafega na mão contrária, visto que o corpo não é meramente anatômico,
vai além e, a partir do conceito de pulsão, enigmaticamente entre o somático e
o psíquico, torna-se um corpo erógeno, numa intensa relação especular com o
outro, constituído justamente nessa relação com este Outro que diz da Cultura e
que o introduz na linguagem, como bem atestam os casos de neurose. E no caso da
deficiência?
Essa é uma boa
pergunta, pois para além de algo supostamente orgânico, o que efetivamente
importa é o lugar fantasmático que essa criança ocupa no desejo da mãe e,
dinâmicamente, como se estruturam as coisas a partir desse aspecto tão sutil e
ao mesmo tempo tão crucial. Se as hipóteses de Freud a respeito da importância
de um filho para uma mulher estão corretas e, se corroboram as notas de Lacan
sobre a criança, endereçadas às psicanalistas de sua época que atuavam nesse
terreno, tais como Jeanne Aubry, Françoise Dolto e Maud Mannonni, podemos
depreender que as vicissitudes ocorrerão entre
a criança e sua mãe, um falo defeituoso que afetará diretamente o narcisismo
dessa mulher. Como amar algo que não completa, mas que, ao contrário, desvela a
castração? Atentemo-nos para as palavras da própria Andréa Brunetto (2008):
Vimos muitos exemplos de
dedicação, sacrifício e de um amor ao filho deficiente. Ainda que ambivalente,
porque este filho destoa do ideal, não podemos nos esquecer de que o amor e a
carência andam de braços dados. Amor ambivalente, que tanto na superproteção
como no abandono, evidenciam sua face do ódio. Mas essa outra face do amor, o
ódio, não é específica dos pais com filhos deficientes. Nem mesmo é específica
dos pais. É humana, demasiadamente humana. (p.60)
Portanto, num mundo que
aspira ao Belo, o perfeito funcionamento das engrenagens do laço social e a
satisfação permanente de seus participantes, esse ser grosseiramente diferente
que causa dúvidas e intriga à Ciência, pondo em xeque conceitos tão valorizados
como a inteligência e a própria noção de um devir, um vir-a-ser para o sucesso,
ou até mesmo a felicidade no sentido mais prosaico da palavra, o deficiente
assombra, uma encarnação do unheimlich
freudiano que desnuda a dificuldade de cumprir o mandamento clássico e ingênuo
de amarmos o outro como a nós mesmos. Se este outro for como nós mesmos, essa
tarefa pode até ser facilitada, mas se este outro marca por meio desta
diferença fundamental uma dimensão de nós mesmos que preferimos não ver, esse
mandamento se esvai e surge algo complicado no lugar, que nem os mais hercúleos
esforços de inclusão conseguem minimizar.
Que livros como esse
ajudem a tornar a convivência com o diferente mais tolerável, menos
discriminatória e mais... humana.
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