BLOG QUE TRATA DE PSICANÁLISE

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sexta-feira, 10 de maio de 2013

RESENHA DE PSICANÁLISE E EDUCAÇÃO: SOBRE HEFESTO, ÉDIPO E OUTROS DESAMPARADOS DOS DIAS DE HOJE


Publicado originalmente no site do Instituto Àgora: http://www.agorainstitutolacaniano.com.br/livros_2.html

Resenha do livro "Psicanálise e educação: sobre Hefesto, Édipo e outros desamparados dos dias de hoje." De Andrea Brunetto, Campo Grande, MS: Ed. UFMS, 2008, 111 p.


O campo da intersecção entre a Psicanálise e a Educação é conhecido, especialmente no Brasil, pela intensa produção teórica, representada pelos muitos artigos, livros, dissertações e teses que são publicados regularmente, não apenas a partir dos psicanalistas interessados pelo tema, mas também por educadores afetados pelo referencial psicanalítico. Os frutos são diversos e a questão da educação em nosso país parece ser suficiente para justificar esforços ungidos pela boa intenção, ainda que seja necessária uma cuidadosa dose de bom senso na arquitetura dessa intersecção, com todos os riscos que essa empreitada possa ter, visto que os dois campos, em essência, são antagônicos e visam algo muito distinto.

Mesmo assim, esse caminho, originalmente fundado por Anna Freud; incentivada pelo pai e também por um importante interlocutor, Oskar Pfister, considerado o pioneiro das pesquisas nessa interessante e profícua extensão do saber psicanalítico, continua aberto e, ao que parece fecundo.

E podemos dizer isso, porque essa aposta permite várias possibilidades, sempre tendo um olhar endereçado à presença do inconsciente vetorizando os laços presentes no ato educativo, tanto pela via informal, como quando um pai educa um filho, bem como também na Educação mais formal, no sistema escolar oferecido pela Cultura; com suas múltiplas vicissitudes, muitas vezes transformadas em objetos de investigação pelas mãos de pesquisadores hábeis.

Devemos dizer também profícua porque permite pensar em outros ângulos de algumas questões que sempre interrogam como, por exemplo, a relação entre professor e aluno, as múltiplas dificuldades de aprendizagem e ensinagem, o fracasso escolar e outros sintomas sociais, a violência e a eclosão de certos fenômenos que supostamente deveria ser alheio ao cotidiano escolar, além de um ponto aqui que nos interessa em particular, o das crianças ditas anormais, que fogem à norma, a uma normalidade homogeneizante e tão condizente com as pré-condições necessárias – porém questionáveis, visto que se transformam em parâmetros ideais – para que a escola funcione nos moldes atuais.

Essas crianças, curiosamente, são chamadas de especiais, e não sabemos se isso deriva de uma especialidade, se deveria ser alvo da atenção apenas de especialistas ou se são, como parece, uma exceção, distorcida por um termo que num primeiro olhar parece positivo, mas quando pensado à luz da hipótese do que os psicanalistas chamam de formação reativa, acaba por desvelar a carga de preconceito que os malabarismos semânticos não conseguem ocultar eficazmente.

E é justamente dessas crianças que Andréa Brunetto trata neste livro, derivado de sua dissertação de mestrado, no Departamento de Educação da Universidade Federal de Mato Grosso do Sul; não aquelas portadoras de uma deficiência física, anatomicamente confirmada e verificada no olhar do leigo e do expert, mas as que se enquadrariam naquilo que se convencionou chamar de deficiência mental, seus efeitos e conseqüências nas vidas dessas crianças e dos adultos que a cercam. Seres que, ao que parece, não detém uma mente supostamente eficiente, que foram tão intensamente retratadas por Maud Mannonni (1985) em seu já clássico A criança retardada e a mãe, livro que, aliás, temia publicar, inibição que foi barrada por seu analista Jacques Lacan, marcando a importância de sua publicação.

O tempo demonstrou que Lacan estava correto, visto que esta obra acabou por se tornar um clássico, alicerçando o que se pensa hoje sobre a falsa debilidade mental. Andréia Brunetto também não se inibiu; como é muito comum em mestres e doutores após a defesa e traz a publico este Psicanálise e Educação: sobre Hefesto, Édipo e outros desamparados dos dias de hoje, para colaborar com a reflexão sobre este tema tão delicado e atual, a segregação do diferente, algo que a globalização não conseguiu extinguir; mas que, ao contrário, parece ter potencializado como vemos cotidianamente na mídia.

O social, até como tentativa de remediar essa situação, em contraponto a uma escola que funcionava de modo segregacionista, lança então em nível mundial a difusão da proposta de uma inclusão generalizada, inicialmente pensada como uma proposição que tem em sua essência a idéia de uma escola que possa acolher a todos sem exceções, independentemente de dificuldades prévias ou adaptativas, potenciais aquém ou além do idealmente esperado e, especialmente, que ajude por meio dessa iniciativa a favorecer o desenvolvimento das pessoas, o bem comum e a equidade nas chances em uma sociedade que funciona estruturalmente, como sabemos, de forma a manter a desigualdade.

E é nesse ponto que a autora centra seus esforços de problematização, num exemplo honesto de Psicanálise em extensão, daquilo que ultrapassa a clínica pensada em termos strictu sensu, do tratamento das neuroses. Analisar, como mostra etimologicamente a palavra, é dividir em pequenas partes e, num primeiro momento, deter-se nelas para então, num movimento subseqüente, praticar exercícios de junções, relações, aproximações e afastamentos, para então poder obter-se algo novo com relação ao ponto inicial. Esse percurso metodológico é feito com a temática do deficiente, provocando o leitor a pensar essa noção historicamente, desde os gregos, as significações dadas ao diferente em variadas épocas, tanto num sentido de discriminação bem como também de valorização, mostrando como ao longo da História este tema inquieta as sociedades, passando pelos ideais mais modernos, chegando à criação da norma, com o corpo sendo tomado de assalto pela Medicina e não mais pelas religiões e seus dogmas.

Com isso, o corpo também passa a ser mensurado, imaginarizado em torno de ideais estatísticos e controlado pela ciência, que evita a todo custo a não eficiência. Com isso, o terreno está fertilizado e pronto para fazer surgir a histeria que, como nos mostra a história da Psicanálise, ensina Freud a criar este campo que postula algo que trafega na mão contrária, visto que o corpo não é meramente anatômico, vai além e, a partir do conceito de pulsão, enigmaticamente entre o somático e o psíquico, torna-se um corpo erógeno, numa intensa relação especular com o outro, constituído justamente nessa relação com este Outro que diz da Cultura e que o introduz na linguagem, como bem atestam os casos de neurose. E no caso da deficiência?

Essa é uma boa pergunta, pois para além de algo supostamente orgânico, o que efetivamente importa é o lugar fantasmático que essa criança ocupa no desejo da mãe e, dinâmicamente, como se estruturam as coisas a partir desse aspecto tão sutil e ao mesmo tempo tão crucial. Se as hipóteses de Freud a respeito da importância de um filho para uma mulher estão corretas e, se corroboram as notas de Lacan sobre a criança, endereçadas às psicanalistas de sua época que atuavam nesse terreno, tais como Jeanne Aubry, Françoise Dolto e Maud Mannonni, podemos depreender que as vicissitudes ocorrerão entre a criança e sua mãe, um falo defeituoso que afetará diretamente o narcisismo dessa mulher. Como amar algo que não completa, mas que, ao contrário, desvela a castração? Atentemo-nos para as palavras da própria Andréa Brunetto (2008):

Vimos muitos exemplos de dedicação, sacrifício e de um amor ao filho deficiente. Ainda que ambivalente, porque este filho destoa do ideal, não podemos nos esquecer de que o amor e a carência andam de braços dados. Amor ambivalente, que tanto na superproteção como no abandono, evidenciam sua face do ódio. Mas essa outra face do amor, o ódio, não é específica dos pais com filhos deficientes. Nem mesmo é específica dos pais. É humana, demasiadamente humana. (p.60)

Portanto, num mundo que aspira ao Belo, o perfeito funcionamento das engrenagens do laço social e a satisfação permanente de seus participantes, esse ser grosseiramente diferente que causa dúvidas e intriga à Ciência, pondo em xeque conceitos tão valorizados como a inteligência e a própria noção de um devir, um vir-a-ser para o sucesso, ou até mesmo a felicidade no sentido mais prosaico da palavra, o deficiente assombra, uma encarnação do unheimlich freudiano que desnuda a dificuldade de cumprir o mandamento clássico e ingênuo de amarmos o outro como a nós mesmos. Se este outro for como nós mesmos, essa tarefa pode até ser facilitada, mas se este outro marca por meio desta diferença fundamental uma dimensão de nós mesmos que preferimos não ver, esse mandamento se esvai e surge algo complicado no lugar, que nem os mais hercúleos esforços de inclusão conseguem minimizar.

Que livros como esse ajudem a tornar a convivência com o diferente mais tolerável, menos discriminatória e mais... humana.


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